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Ricardo Paes Mamede: “O relatório da dívida é extremamente contido”

Economista defende que propostas do grupo de trabalho a que pertenceu são de “bom senso”, mas admite que atualmente não há condições políticas na Europa para uma renegociação dos empréstimos europeus.
Cristina Bernardo
5 Maio 2017, 06h58

Professor de economia política no ISCTE, Ricardo Paes Mamede esteve no grupo de trabalho criado pelo PS e Bloco para avaliar a sustentabilidade da dívida. O economista sublinha que o documento é  “realista”.

O relatório final é uma versão negociada entre diferentes economistas. O que mudaria no documento se fosse feito apenas por si?
É difícil dizer. Digamos que, quando falo sobre este tema, há duas preocupações que tendo a ter mais do que este documento teve. Em primeiro lugar, tornar mais clara a ideia de que uma eventual renegociação da dívida pode acontecer em cenários muito diferentes. Optou-se, no relatório, por apresentar um cenário com teor exemplificativo. Não é mais do que isso. Não há uma proposta. Em segundo lugar, tendo a tornar mais explícitas as minhas reticências face à disponibilidade das instituições europeias para proceder a uma reestruturação significativa da dívida. O destino do país não pode estar dependente daquilo que as autoridades europeias estão dispostas a fazer.

É um relatório otimista, ao confiar na bondade das instituições europeias para prolongar prazos de empréstimos e reduzir juros?
Não tenho essa interpretação. Creio que é realista em relação às dificuldades que o país enfrenta no pagamento da dívida.

Como reage às críticas ao documento, sobretudo vindas da direita?
Em geral, não dou muita importância, do ponto de vista técnico, ao tipo de comentários que têm vindo a ser feitos. Não me fazem pensar muito. Soam-me a comentário de quem se deu pouco ao trabalho de ler  o conteúdo do relatório com atenção e de forma distanciada da luta política.

Algumas propostas tocam no Banco de Portugal (BdP). Não há o risco de beliscarem a independência do banco central?
O relatório tem propostas distintas no domínio da ação do BdP. Tem uma proposta que é uma recomendação ao conselho de administração, no sentido de não aumentar o seu nível de provisões. Não é para recuar nas decisões que tomou no passado, é para não continuar com um nível de aprovisionamento tão elevado. É apenas uma recomendação técnica, a meu ver baseada no bom senso. E depois há uma outra dimensão que passa por rever as regras para a determinação das provisões, retirando o grau de autonomia que o BdP tem. Acho que o Estado, enquanto acionista do BdP, deve ter maior margem de manobra, respeitando os princípios básicos de boa gestão. O nível de arbitrariedade que os bancos centrais têm na Europa é injustificado.

Não seria comprar uma guerra com o BCE?
O que me parece é que a política que o BdP decidiu prosseguir em 2016 deveria comprar uma guerra com o BCE. O que o BdP fez foi neutralizar boa parte dos impactos positivos que a política de compra de dívida pública pelo BCE poderia ter tido em Portugal, e que não teve devido a uma política excessiva de aprovisionamento, que se reflecte na distribuição de dividendos e no pagamento de impostos.

Há quem argumente que esta proposta do grupo de trabalho não reduz a dívida, apenas dá mais margem ao défice.
Sim, mas não nos podemos esquecer que cada euro a mais de défice implica financiamento nos mercados e um aumento da dívida.

Na proposta de rever prazos e juros dos empréstimos europeus, há atualmente condições políticas para levar a cabo essa negociação?
Se o atualmente significa hoje, a resposta é um não taxativo. As eleições alemãs apresentam-se já há algum tempo como um limite para um compasso de espera. E tenho muitas dúvidas, mesmo depois das eleições alemãs, que haja condições para ir muito mais longe. Mas penso que é uma questão de tempo até que a UE seja confrontada com a inviabilidade do que está a ser pedido a países com situações semelhantes à de Portugal.

O Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) alega que não é possível reduzir os juros dos empréstimos porque isso seria uma transferência orçamental que o atual enquadramento legal europeu não permite.
Eu vi essa afirmação do porta-voz do MEE, mas ela é parcial e enviesada. O MEE está neste momento a cobrar 1,08% de taxa de juro à Grécia e fá-lo dentro dos tratados atuais, fá-lo assegurando que não há perdas financeiras nesse empréstimo. O MEE está a financiar-se a custos muitíssimo baixos, o que permite financiar os Estados a taxas que não se afastam das que são propostas pelo relatório.

Mas replicar esse caso grego não implicaria também um programa de ajustamento como a Grécia?
É verdade, mas isso não é uma condicionante legal. É uma condicionante política das instituições europeias, que determina a forma de lidar com as dívidas das economias mais frágeis.

O recurso ao MEE implica sempre algum grau de austeridade.
Não implica necessariamente austeridade, implica condicionalidade. Portugal já tem condicionalidade. As políticas que são seguidas em Portugal são todos os anos sujeitas a uma análise das instituições europeias e a uma enorme pressão. Um programa de ajustamento com condicionalidade apenas aumentaria o nível de pressão que já existe. Mas, num caso e noutro, não me parece que o caminho seguido na Grécia – um programa de ajustamento em troca de juros mais baixos – seja a opção mais indicada para a Europa.

Não teme que uma proposta como esta, mesmo não sendo do Governo, assuste investidores e agências de rating?
Até agora não vi nenhum alarme por parte de investidores ou agências de rating face ao relatório. Qualquer pessoa que o leia, e que não esteja envolvida na luta política diária, vai achar esse argumento ridículo. É extremamente contido, quer nas análises quer nas propostas. É cómico que as mesmas pessoas que afirmam que este relatório é imprudente digam na frase seguinte que ele representa um enorme recuo ou a esquerda a meter a viola no saco. Não é nem uma coisa nem outra. É uma análise realista do problema da dívida, que procura encontrar um conjunto de propostas para enfrentar de forma transparente e honesta os desafios que temos pela frente.

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