O Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESup) trouxe a denúncia à praça pública. A direção da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) cancelou os contratos de bolsa a dois bolseiros de gestão ciência e tecnologia (BGCT), em funções na própria FCT, com o argumento de que houve “violação da exclusividade devido à participação não remunerada destes doutorados em Centros de Investigação”. Num comunicado da Associação de Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), lê-se que à violação do regime de exclusividade juntar-se-ia ainda a não declaração atempada de potenciais conflitos de interesses por parte dos bolseiros. Ambas são justificações com pouco ou nenhum sentido e que justificam, isso sim, que se exijam respostas e reparações aos órgãos diretivos da FCT. Comecemos pelas justificações.
A questão da dedicação exclusiva dos bolseiros é uma falsa questão. Em parte nenhuma a pertença a um centro de investigação constitui uma violação da exclusividade. Por exemplo, nenhum docente do ensino superior público português em dedicação exclusiva violou, no passado ou no presente, o seu contrato de trabalho por participar (com maior ou menor percentagem e sempre sem remuneração) de um centro de investigação externo à instituição que o emprega.
Por maioria de razão, um bolseiro, que nem sequer dispõe de um genuíno vínculo laboral (um contrato de bolsa não é um contrato de trabalho), não pode, em geral, ter um regime de exclusividade mais exigente. Até poderia em particular, mas era preciso: primeiro, que isso estivesse claramente escrito em algum lado; segundo, que fosse do conhecimento de todas as partes que assim teria de ser; terceiro, que ao menos tivesse sido essa a prática no passado.
A verdade, porém, é que nenhuma destas três condições é satisfeita. Ironicamente, muitos dos bolseiros BGCT ao serviço da FCT candidataram-se com CVs que não escondiam, na verdade até faziam valer como mérito, a sua participação em centros de investigação. E caso a direção da FCT pretendesse implementar doravante uma prática de exclusividade mais exigente, teria de o fazer com clareza, informando os bolseiros BGCT e garantindo a igual oportunidade a todos de fazerem uma escolha. Mas não foi nada disto que se passou. A direcção da FCT informou uns tantos bolseiros da sua intenção de lhes cancelar as bolsas com base numa justificação que nenhum deles poderia adivinhar à partida. E assim os confrontou, de imediato, com uma situação de despedimento iminente. A isto chama-se montar uma armadilha.
Falta a questão dos conflitos de interesse. De entre os muitos bolseiros que trabalham na FCT (cerca de um terço do pessoal da Fundação são bolseiros), uma parte deles presta assistência aos painéis de avaliação da FCT, seja para concursos de bolsas de investigação seja para concursos de projetos. Contudo, quem já foi avaliador da FCT sabe bem duas coisas: primeiro, que os bolseiros não têm junto ao painel qualquer papel relevante no que respeita a deliberações, não participando das discussões a nenhum título, apenas prestando assistência técnica administrativa; segundo, que em cada concurso é dada a conhecer a todos os avaliadores uma lista bastante exaustiva dos tipos de potencial conflito de interesse de forma a que cada um dos avaliadores identifique todos os conflitos possíveis consigo e assim seja excluído do processo de avaliação em todos os casos identificados.
Não sei se se justifica o mesmo tipo de escrutínio de conflito de interesses com bolseiros que apenas prestam assistência, mas admitindo que se justifique (e deve ser a direcção da FCT a avaliar se assim deve ser), então era imperioso que um procedimento de identificação de conflitos de interesse tivesse sido proporcionado aos bolseiros da FCT com funções de acompanhamento de processos de avaliação.
Tudo isto é apenas senso-comum um pouco mais elaborado. Então, por que razão estão dois bolseiros com alguns anos de serviço na FCT a ver canceladas as suas bolsas em vésperas de as poderem ver transformadas em contratos de trabalho a sério? Que justificação há para esta urgência em pôr fora, com a malha que está mais à mão – mas que é tão mal amanhada –, dois bolseiros que não fizeram nada que não tenham feito transparentemente desde o início das suas funções e sem notícia de nenhuma falha grave de desempenho?
Não é possível ignorar que os visados sejam precisamente os dois bolseiros que mais ativamente intervieram, com assídua presença na Comissão de Educação e Ciência da Assembleia da República, no processo de discussão e alteração do DL 57/2016, decreto promulgado pelo Presidente da República na sexta-feira passada e que vem aprovar um regime de contratação de doutorados destinado a estimular o emprego científico e tecnológico em todas as áreas do conhecimento; em suma, um regime de integração dos bolseiros de investigação, que os retira finalmente de uma inominável precariedade. Este decreto-lei junto com a iniciativa mais larga do PREVPAP (programa de combate à precariedade laboral na Administração Pública e no setor empresarial do Estado) são iniciativas incontornáveis para um Governo de esquerda. Contudo, nos meandros há vítimas que caem de pé.
Só que a Assembleia da República não pode permitir que, nas suas barbas, se perpetre esta violência. Deve, pelos meios ao seu alcance, exigir uma retificação por parte da FCT que dê por nulos os cancelamentos de bolsas e garanta a normal transição para contratos de trabalho a quem, junto com a própria a Assembleia da República, contribuiu para esta solução. Não há moedas de retaliação para a troca no gozo de funções públicas.