A análise da compra da Media Capital (TVI) pela Altice não pode ser restrita ao mercado português. Altice NV, com sede na Holanda, considera-se um “líder global em telecomunicações, conteúdos, media, entretenimento e publicidade”. Há poucos dias, lançou um IPO com sucesso nos EUA, com uma valorização imediata de 5%. Todavia, Patrick Drahi, presidente do grupo, disse na ocasião à imprensa americana: “Somos muito pequenos”. No total tem cerca de 50 milhões de subscritores dos diversos serviços. Nos EUA, onde tentou comprar a Time Warner, é o quarto maior operador de cabo com 4,9 milhões de subscritores e não desdenharia comprar o terceiro maior. É conhecida a sua dimensão em Portugal. De facto, a nível global há maior.

A aquisição da Media Capital insere-se na tendência mundial para a verticalização da operação e para a oferta de serviços em pacote que inclui telefone móvel (conteúdos e canais de básicos e premium, TV, Internet banda larga fixa e móvel, telefone fixo e móvel). É um processo comercial bem testado na Europa, mas que nos EUA só agora começa a ser norma, mesmo pelos operadores que há vários anos estão verticalizados, ou seja, que detêm redes móveis para além de canais e produção de TV, Internet, cabo, satélite ou IPTV.

Esta uniformização da oferta está a obrigar os operadores a procurar diferenciar-se por novos meios. Desde há anos que a diferenciação deixou de poder ser feita pelo número de canais (todos têm muitos), pela tecnologia (velocidade da internet, catch up TV, guia TV, VOD, etc), ou pelo customer service, que em Portugal é razoavelmente bom em todos. Os conteúdos são, de momento, a última fronteira para a diferenciação.

Eu levo a sério as declarações de Michel Combes, CEO da Altice, quando diz que a compra da Media Capital, de que faz parte a produtora Plural especializada em novelas, se integra na estratégia global do grupo para a oferta de mais conteúdos aos consumidores, apostando em produções e formatos locais. De resto, em França, depois da compra do operador móvel SFR pela Altice, até então operador de TV por cabo, a empresa começou a investir na produção de séries e filmes e comprou os direitos da Champions League, constituindo-se num concorrente ao Canal+, o operador ainda dominante nesses mercados.

A procura por conteúdos de qualidade e distintos está a aumentar. Venho defendendo há anos que a opção pela produção de novelas e séries exportáveis, cofinanciada pelo ICA e promovida também pela AICEP, deveria ser seguida com determinação pelos produtores portugueses. Há dias, a realizadora neozelandesa Jane Campion (The Piano), premiada com Oscar e Palme d’Or, deu uma entrevista ao The Guardian em que afirmou: “As pessoas inteligentes antes faziam cinema. Agora fazem TV”.

Desde Hitchcock que grandes realizadores, guionistas e atores fazem TV. Campion vai na segunda série “Top of the Lake”, considerada um “Twin Peaks na natureza agreste da Nova Zelândia” (com Holly Hunter na primeira série e agora com Nicole Kidman). Em França, cineastas do cinéma d’auteur fazem séries de TV, como “Engrenages” (começou em 2005 no Canal+, passou na RTP 2). É agora coproduzida com a BBC (com o título Spiral) e foi comprada pela Netflix. “Candice Renoir” é outra série policial francesa (começou em 2013), exibida atualmente no AXN.

Os conteúdos são estratégicos. O problema comum aos operadores integrados de pay TV e telecomunicações (multisystem operator nos EUA) chama-se precisamente Netflix (investimento em produção, 6 mil milhões de dólares), mas também a Amazon Prime Video (4,5 mil milhões de dólares), Hulu e YouTube Red. Estes produtores e distribuidores a retalho de conteúdos de TV produzem cada vez mais séries com cada vez maior qualidade, que fazem furor em todo o mundo. Este movimento começou em 2005, mas foi a partir de 2007, quando a Netflix começou a subscrição de filmes e séries por streaming, que rompeu a cadeia de valor de décadas.

A série salta agora diretamente da sala de produção para a sala do consumidor via uma rede de distribuição em que o fornecedor não tem de investir, nem tem de manter. O poder destes produtores/distribuidores está também a levar a concentrações nas tradicionais empresas produtoras de canais de TV. Há notícias recentes que dão conta, uma vez mais, que a Discovery Networks (canais de natureza, ciência) está em negociações para fusão com o Scripps Networks, produtor especializado em canais lifestyle.

Ao contrário do que tem sido afirmado, não é inédita na Europa a compra de um canal de televisão por um operador de pay TV/telecoms, como é agora o caso da TVI. Há numerosos exemplos de concentração em vários dos mercados relevantes em que o pay TV atua e que são, em geral, aprovados pela Comissão Europeia, cuja análise se debruça sobre cada uma per se das seguintes principais atividades na cadeia de valor de conteúdos relacionados com TV: produção de conteúdos, licenciamento de direitos de exibição, venda grossista de canais de TV, venda retalhista de serviços de TV aos clientes finais (canais premium, VOD, replay TV, etc).

A Bélgica e a Holanda são férteis em exemplos de concentração. Em 2015, a Liberty Global, controlada por capitais americanos, fornecedor de cabo, internet e telefone em 12 países europeus e outros fora da Europa, detinha o grupo Telenet que opera uma rede de cabo na região flamenga da Bélgica e outras zonas, e que incluía vários canais de pay TV de desporto e filmes. Em conjunto com os investidores W&W e Corelio, uma empresa de media impressos, notícias online e espaço publicitário, compraram 50% da empresa Vijver Media, proprietária dos canais de televisão Vier (Quatro) e Vijf (Cinco) e ainda de uma produtora de TV e outra de venda de publicidade.

Sendo uma concentração, a operação foi avaliada e autorizada pela CE mediante algumas condições, designadamente a obrigatoriedade de acesso não discriminatório àqueles canais por operadores terceiros. Também não foi autorizada a redução da respetiva qualidade. Já em 2014, a Liberty Global adquirira canais de televisão na Holanda, aquando da compra do operador por cabo concorrente Ziggo, proprietário de HBO Nederland que operava canais de TV e de VOD. Esta operação também foi autorizada pela CE.

Em Portugal não é inédito um operador de telecomunicações ser proprietário de canais de televisão, direta ou indiretamente. A TV Cabo participou na parceria que lançou a Sport TV e lançou a solo o primeiro canal de notícias de TV por cabo, CNL, que foi depois comprado pela Impresa. A TV Multimédia (depois ZON, atual NOS) tinha contratos de exclusividade com a SIC e poder de oversight sobre canais temáticos. Antecipando a tendência do mercado, mais recentemente, a ZON concorreu ao quinto canal na TDT – um projeto profissional de televisão aberta e comercial liquidado sem justificação industrial credível pela ERC (o então presidente é o atual ministro da Defesa), e de cujo processo judicial de impugnação a NOS desistiu. Ou seja, o que a Altice agora tem é o que a NOS já poderia eventualmente ter, embora longe da dimensão de mercado oferecida pela TVI.

A NOS disse que a aquisição da Media Capital abria uma “guerra”. A TVI é um canal comercial que procura o maior público possível. É de admitir que alguns fanáticos das novelas pudessem mudar-se para a Altice, caso apenas estivesse disponível na sua oferta, com consequente provável penalização da brand Altice. Todavia, desde que o canal TVI continue disponível nas mesmas condições a todos os operadores (ou seja, que não haja foreclosure do canal), o que é simples de resolver pelos reguladores Autoridade da Concorrência e ERC, não vejo qual a materialidade da objeção.

Por seu lado, a Plural trabalha quase em exclusivo para a TVI, pelo que também daí não advirá alteração das condições mercado. A Plural poderá, no âmbito da Altice, almejar maior dimensão em mercados internacionais, desde logo aqueles onde opera a Altice, o que é interessante do ponto de vista nacional. A maior capacidade negocial da Altice, que opera a nível global, poderá jogar a seu favor quando da negociação de direitos de exibição de filmes, séries e desporto. Alguns destes conteúdos serão certamente exclusivos da Altice, mas no que respeita ao desporto há dispositivos para garantir a (questionável) disponibilidade a terceiros daqueles que se considera de interesse público.

É possível que a guerra da NOS venha a ser outra: lutar pela independência. Neste movimento global de concentração, não é de excluir a oferta por parte de um grande operador internacional para compra da NOS.