“É extraordinário o desvelo que os suecos colocam na preservação da sua cultura e dos costumes do passado”, disse-me Alessandra, uma italiana de Roma profissional de eventos culturais, que integrava um grupo de especialistas de vários países europeus num encontro de quatro dias sobre museus. Em Itália o passado é desprezado, confidenciou. Concordei que Portugal não era muito diferente. Roma está descuidada, caos no trânsito, enorme stress, fuga das empresas para Milão. Ficam os serviços do Estado.

Estávamos nesse momento em Estocolmo, de visita a Skansen, onde está o primeiro museu ao ar livre do mundo, copiado por todos os outros que vieram depois, como a Secção Regional na Exposição do Mundo Português, em 1940, em Lisboa. Em Skansen, 150 casas em madeira desde o século XIII, de ricos proprietários de florestas no norte do país, às de pobres camponeses do sul da Suécia, mostram sem vergonha como antes se vivia.

O museu em Skansen foi fundado em 1891 por Artur Hazelius, linguista, professor e folkbildare (“educador popular”), num pedaço de terra que comprou naquela ilha, no momento em que a Suécia se industrializava e a agricultura se mecanizava. O passado estava a desaparecer e era preciso preservá-lo. O motto de Hazelius era “conhece-te a ti próprio”, significando que apenas conhecendo a nossa história nos podemos conhecer a nós mesmos.

Na Suécia, o desvelo e conhecimento pormenorizado das pessoas e coisas do passado é acompanhado por uma hospitalidade e gentileza inexcedíveis, que procura colocar qualidade em todos os momentos e nas relações entre as pessoas. Eu diria que qualidade, naturalidade, gentileza e orientação social são traços que distinguem a hospitalidade sueca.

O encontro sobre museus realizou-se no palácio Skokloster (significa “mosteiro da floresta”, pois naquele local houve um mosteiro), a uma hora de Estocolmo, na passada semana. Visitei pela primeira vez Skokloster em 1971, poucos anos depois de ter sido adquirido pelo Estado sueco. Era inverno e o palácio encontrava-se fechado. Não há aquecimento. Edificado por Carl Gustaf Wrangel, um alemão báltico que ficou rico com a Guerra dos 30 Anos, o palácio é enorme e para prevenir o perigo de incêndio só há eletricidade na pequena zona de escritórios.

Skokloster, tal como outros palácios e monumentos suecos, é uma cápsula do tempo. Foi construído no auge do poder imperial sueco, no século XVII, uma época de importância para a construção da cultura sueca comparável à do quinhentismo português. Os proprietários de muitos palácios (quase sempre designados por castelo mesmo que seja apenas uma casa) preservaram, geração após geração, o património dos antepassados e de antigos proprietários. Em Skokloster tudo foi preservado. O enorme ateliê de construção, que ocupa toda uma lateral superior do palácio, é absolutamente fantástico. Estava destinado a salão festas, mas por súbita falta de fundos do então proprietário, felizmente nunca não o foi. Naquele espaço entra-se diretamente no ambiente e nas ferramentas de trabalho da madeira do século XVII.

O ex-líbris de Skokloster é a famosa pintura gastronómica de Rudolfo II, imperador do Sacro Império, simbolizado como Vertumnus, o deus romano das metamorfoses, representado por frutos e vegetais pelo pintor maneirista italiano Arcimboldo. Vertumnus também simbolizou o encontro em Skokloster, integrado no projeto In_Nova Museum financiado pela União Europeia, subordinado ao tema “Art and Food” (Arte e Cozinha), de que faz parte o Museu Bordalo Pinheiro, em Lisboa – um artista cuja relação com a gastronomia é conhecida.

O conceito “art and food” considera que a gastronomia é um elemento importante para atrair visitantes a museus, em particular a museus distantes dos grandes centros urbanos. A promessa de uma experiência gastronómica diferente poderá ser um atrativo que justifique aquilo que o Guia Michelin designa por “vaut le détour” –  vale a pena o desvio para visitar esses grandes e pequenos museus que não são beneficiados pela proximidade a rotas turísticas de massa.

De regresso a Portugal leio neste jornal a notícia que o Brexit induzirá uma diminuição de turistas britânicos em Portugal (e provavelmente em toda a zona euro). Desci para as caixas de comentários dos leitores e, para além das boçalidades costumeiras, encontrei um debate civilizado sobre o turismo em Portugal. Segundo leitores, a gastronomia portuguesa não está a ser aproveitada, nem sequer para o turismo não cultural. Antes pelo contrário, está a ser destruída.

O leitor identificado como Julio cruz escreveu (excertos): “Algarve a nível de cultura própria já nada tem para dar. A gastronomia é banal, frango no espeto e sardinhas quando as havia ou então peixe caríssimo de aquicultura. Sumiu-se a cultura local e os algarvios nem um manjerico põem na janela. Compare-se o esmero e asseio da Andaluzia onde os autóctones têm orgulho de ser andaluzes. Comparado com países como a Grécia somos uma lástima na defesa da Cultura nacional.”

Por seu lado, o leitor identificado como Pedro Portugal pergunta (excertos): “O que é que Portugal poderia oferecer de diferente? As vilas e cidades históricas? Certamente, mas estão vazias de pessoas e a cair de podre. Monumentos em quantidade e qualidade? Em quantidade temos muitos (Portugal é o 3º país do mundo com mais fortalezas medievais, por exemplo), mas que interessa isso se estão todas abandonadas e em ruínas! Poderíamos oferecer a nossa gastronomia variada, saudável e única? Como, se nos restaurantes só se vende bife com batatas fritas e ovo a cavalo? Poderíamos oferecer as nossas belas paisagens e a nossa grande diversidade natural? Sim, se as florestas não ardessem todos os anos como fósforos e não tivéssemos o país todo tomado de norte a sul por eucaliptos! Devíamos ter promovido aquilo em que somos verdadeiramente diferentes: o turismo histórico/cultural, o turismo de natureza e o turismo gastronómico.”

Mas, nem tudo é mau. Segundo o canal de notícias CNN, Lisboa é atualmente a cidade mais cool da Europa. E o Porto faz-lhe total concorrência (é simpático, mas a CNN não conhece os stockholmare?) São as pessoas que fazem estas cidades cool. A SIC e a TVI têm feito um bom trabalho na promoção das gastronomias locais. É preciso fazer muito mais para proteger e promover o património humano das cidades, desde logo a sua secular cultura gastronómica, esse elemento diferenciador, saboroso, fixador de populações e que pode justificar o desvio a museus distantes. Que Vertumnus, o deus da metamorfose, nos devolva a autenticidade e a qualidade dos costumes simples.