Esse documento foi entregue ao PS e serviu de base para estabelecer acordos com partidos à esquerda e definir os dois últimos Orçamentos do Estado. Muitas medidas nunca chegaram a ser concretizadas, mas ali estava a génese das reversões das medidas mais violentas aplicadas durante o programa de ajustamento.
Determinava o fim dos cortes salariais na função pública e da sobretaxa de IRS, com impacto direto nos rendimentos de milhares de portugueses.
Mário Centeno foi alvo de violentas críticas, que não raras vezes evoluíram para um dramatismo histérico em torno do suposto apocalipse orçamental que ocorreria se tal programa fosse implementado. Os Orçamentos do Estado definidos com base nesse documento foram arrasados pelos mais saudosos de tempos em que eram anunciadas novas medidas draconianas a cada trimestre.
Mas, passados dois anos, é curioso olhar para esse documento. Nos principais indicadores, o que previa que viesse a ocorrer este ano? Centeno e o grupo de 12 economistas indicavam que, em 2017, Portugal cresceria 3,1%, que o desemprego estaria em 10,2%, o défice teria descido para 2,5% e que a dívida pública estaria em 125% do PIB.
E o que sucedeu, de facto? Duas das principais projecções foram superadas antes do tempo – a taxa de desemprego e o défice já estão abaixo das projecções feitas há dois anos. O país está perto de atingir a terceira – o crescimento poderá ficar em torno de 3% este ano, segundo algumas previsões. E a dívida derrapou, mas em grande parte devido a intervenções não previstas no sistema financeiro, como a do Banif. Nada de apocalipse.
É certo que muito mudou desde a apresentação daquele documento. As metas orçamentais do Governo foram revistas, muitas medidas tiveram de ser renegociadas com Bruxelas, outras ficaram na gaveta, o ambiente externo primeiro piorou e depois melhorou, o boom do turismo deu uma ajuda extra preciosa.
Mas constatar que o país não anda assim tão longe do que estava previsto há mais de dois anos é uma lição sobre como o autismo da austeridade orçamental a todo o custo é um mau conselheiro.
Com o emprego e o PIB a darem sinais robustos, é legítimo perguntar o que está a acontecer para que a actividade económica do país esteja a evoluir de forma tão favorável. Mas é também útil perguntar o que não está a acontecer. O economista húngaro George Kopits fez uma feliz síntese, num estudo que escreveu há um ano para o Gabinete de Avaliação Independente do FMI.
Tanto em dimensão como em velocidade, os programas da Grécia e de Portugal implicaram dos maiores ajustamentos orçamentais observados nas últimas décadas, na Europa. E não só tinham um carácter excessivamente pró-cíclico – com demasiadas medidas que agravavam a recessão – como foi feita uma opção injustificável: a constante revisão das metas para o défice nominal, em função da evolução do PIB. Quando a economia encolhia mais do que o previsto, o défice em função do PIB naturalmente aumentava, e eram impostas novas medidas de consolidação, que só agravavam a recessão. Kopits é claro: “Esta abordagem é autodestrutiva, tal como é caso de um cão a perseguir a própria cauda”.
E é isso que não está a acontecer agora: o cão deixou de perseguir a própria cauda. As organizações internacionais, do FMI à Comissão Europeia, estão lentamente a reconhecer que havia caminhos alternativos, mas é demasiado cedo para cantar vitória. Assim que houver uma turbulência nos mercados financeiros ou uma recessão, é quase certo que haverá quem, na Europa, queira pôr de novo o cão em fúria descontrolada. A ideologia nunca morre, só adormece. Esperemos que seja uma sesta longa.