Uma das grandes vantagens do sistema de mercado, enquanto organizador da actividade económica, é promover, quando há suficiente concorrência, a satisfação dos consumidores. A ideia é simples: os produtores, em busca do seu lucro, lutam por cativar os consumidores. Se existirem diversos produtores, os consumidores têm o poder de escolher qual o produtor a que vão comprar o bem ou serviço que desejam.
Essa liberdade de escolha confere ao consumidor um poder que, em linguagem da ciência económica, se designa por “soberania do consumidor”. Essa soberania traduz-se numa satisfação dos consumidores, que obtêm o que desejam em quantidade, variedade, qualidade e preços razoáveis.
Esta história é, aliás, transmitida aos alunos de primeiro ano em qualquer licenciatura em Economia. E é uma história que encontra eco na realidade. De facto, nas sociedades capitalistas ocidentais, existe uma abundância de oferta de bem e serviços que parece provar a teoria: o consumidor tem tudo para ficar satisfeito. Acontece que, quando analisamos esta questão com mais cuidado, percebemos que essa teoria não passa de um conto infantil.
Por partes.
Primeiro, um dos pressupostos da teoria é que existe forte concorrência entre os produtores. Porém, a realidade é diversa: são frequentíssimas as situações em que a concorrência é fraca ou até inexistente. Os exemplos abundam. Telecomunicações, serviços financeiros (bancários e outros), fornecimento de electricidade, seguros, são casos paradigmáticos de oligopólios ou monopólios que prestam serviços muito importantes e que, frequentemente, não são de qualidade, não oferecem variedade, e praticam preços excessivos. Este problema é de difícil resolução, por mais entidades reguladoras que se criem. Há condições específicas a esses mercados que tornam a concorrência uma miragem. Não é de espantar que, aqui, a satisfação e a soberania do consumidor vão pelo cano abaixo.
Segundo, e mais importante, há um problema profundo e sistémico nesta ideia da soberania do consumidor. É que mesmo que a concorrência funcione bem, e que a satisfação do consumidor esteja garantida, quem garante que isso basta para a satisfação das pessoas? Esta lógica de organizar toda a economia, e por consequência toda a sociedade, em nome da satisfação do consumidor é um erro fundamental. Basta um mínimo de reflexão para se perceber que o consumo é apenas uma parte das nossas vidas.
A satisfação com o consumo é importante, mas é apenas uma parte menor da nossa satisfação com a vida. Quantas horas por dia somos consumidores? Quantas horas por dia somos trabalhadores? Quantas horas por dia somos família? Quantas horas por dia somos amigos? Quantas horas por dia estamos dedicados aos nossos hobbies? Visto assim, percebemos que o consumo é apenas uma pequena parte das nossas vidas. E o problema é que uma sociedade calibrada apenas para a satisfação do consumidor acaba por interferir na satisfação que temos nas outras dimensões: o que é bom para o consumidor pode não ser bom para o trabalhador, para o membro da família, para o amigo, para aquele que quer ter lazer.
Todos gostamos de poder ir comprar o que nos apetece ao centro comercial às 23h30 de um domingo. Enquanto consumidor acho fantástico. Porém, se tivesse que passar os domingos enfiado numa loja, ganhando pouco, deixando a minha família, amigos e lazer ao abandono, ficava tudo menos satisfeito. Também gosto muito ir de avião do Porto a Barcelona por 30€. Mas se fosse trabalhador de uma lowcost, com contrato a prazo, a ganhar trocos e a ser tratado como uma peça que só dá custos, sentir-me-ia muito mal.
Enfim, há uma contradição insanável entre a maximização da satisfação do consumidor e a maximização da felicidade das pessoas. Como defendo que vivemos para sermos felizes e que a sociedade deve ser organizada tendo em conta essa felicidade, a satisfação do consumidor tem que ser balanceada com todas as outras satisfações que compõem a nossa felicidade: a satisfação familiar, a satisfação no trabalho, a satisfação financeira, social, cívica e política.
Calibrar uma sociedade apenas tendo em vista a satisfação do consumidor só beneficia quem apenas consome – os que vivem de rendimentos não provenientes do seu trabalho. Essa sociedade torna-se numa ditadura que, a médio prazo, se corrói: porque aquilo que um cidadão comum beneficia enquanto consumidor, perde enquanto trabalhador, enquanto familiar, enquanto cidadão, enfim, enquanto pessoa, de tal forma que até como consumidor deixa de poder usufruir dos benefícios que no início obtinha.
A solução é simples: criar as regras legais que façam com que o mercado satisfaça o consumidor (através da concorrência) mas com a restrição de que todas as outras satisfações têm que ser atendidas primeiro.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.