Vai ganhando vozes a discussão sobre como se organizaria o mundo social se as economias deixassem de depender, no essencial, de trabalho assalariado. Pode ser levada com diletantismo académico, ou com o visionarismo da ficção científica, mas também com um certo sentido de urgência dada a tendência, já bem identificada, para a substituição tecnológica de postos de trabalho.
Esta discussão suscita necessariamente uma outra sobre o valor do trabalho, discussão que em nada depende da primeira, a não ser na oportunidade. Mesmo no contexto de uma enorme alavancagem das economias no trabalho assalariado não deixa de fazer sentido reflectir sobre o seu significado social e político – até talvez com mais pertinência. A novidade trazida pela escassez do trabalho é não se poder evitar mais uma discussão que tem estado silenciada. Pois bem, nessa discussão, além do tabu, há quatro mitos que é preciso desmontar:
1. o mito de que o trabalho assalariado é individualmente realizador.
2. o mito de que o trabalho assalariado é um aspecto central da vida em sociedade.
3. o mito de que, em geral, não se trabalha se não houver a pressão do salário.
4. o mito de que se gasta com muito mais critério quando custa mais a ganhar.
Todos estes lugares-comuns se arrogam de uma evidência que não se questiona, mas dificilmente se sustentam se verdadeiramente interrogados, pondo a descoberto um fundo convenientemente inconfessável de acordo tácito que as grandes divisões ideológicas entre esquerda anti-capitalista, direita capitalista e mesmo doutrina social da Igreja têm escondido.
1. O mito da realização individual
É um insulto à esmagadora maioria dos assalariados sugerir que é pelo trabalho pago, esse que lhes leva a maior parte do tempo de vida em vigília, que se realizam individualmente. A esmagadora maioria das pessoas apenas se permite acalentar alguma realização no seu tempo de lazer ou depois da vida activa, portanto, em oposição aberta ao trabalho assalariado, que apenas lhes serve para obtenção de rendimento. Só elites, afortunados ou especialmente dotados serão excepção.
Pode argumentar-se que a possibilidade de escolher o trabalho que se faz permitiria melhores condições de auto-realização. Mas todo o trabalho assalariado assenta no pressuposto contrário, de uma desigual distribuição do trabalho, seja quanto ao tempo de actividade seja quanto à actividade efectuada a troco de rendimento. A desigualdade na distribuição de trabalho converge com a desigualdade na distribuição de rendimento.
2. O mito da centralidade social
Tomar o trabalho assalariado como socialmente central é tomar uma relação social estruturalmente desigual e de poder como algo apreciável e em si mesmo inquestionável. Postas as coisas em pratos limpos, não há nenhum motivo não preconceituoso ou cúmplice para que associemos o interesse das pessoas pelo mundo social em que vivem a algo tão negativo como a conformação a uma relação de poder. Este é o preconceito que tem de ser enfrentado criticamente, porque os preconceitos têm este defeito estrutural: são respostas que fizeram por matar as questões a que querem responder como inevitabilidades.
À esquerda, a percepção da dominação pelo trabalho assalariado torna a defesa da contratualização um imperativo. Mas é bom que se entenda que é apenas uma defesa da parte fraca, cujo status já foi, entretanto, dado por assente. Não houvesse, à cabeça, semelhante desigualdade e a contratualização não teria a importância que assume obrigatoriamente num mundo social que tem o trabalho assalariado por central. O programa maior não devia, pois, ser uma desigualdade laboral defendida mediante contratualização, de preferência colectiva, mas sim questionar a desigualdade intrínseca à relação de trabalho assalariada.
3. O mito da preguiça
Até pode acontecer que se acompanhe parte significativa do que já se disse acima e que se ressalve que uma coisa é o trabalho assalariado outra é o trabalho em geral, que pode ter modalidades não prejudicadas pelos malefícios da assalariação. Contudo, depressa aparece mais um mito, que vem no essencial concluir que não há trabalho sério se não for assalariado, porque, alegadamente, em geral, ninguém se dispõe a trabalhar a não ser que haja a pressão do salário.
É o mito da preguiça constitutiva, na verdade ele mesmo um mito preguiçoso que não se pergunta duas ou três perguntas elementares como: 1) um trabalho não forçado pela procura de rendimento não é um trabalho mais desejado e, consequentemente, mais motivador? 2) trabalhar menos horas por dia, consumir menos tempo da vida das pessoas, não é melhor para as pessoas individualmente e para as comunidades de que fazem parte? 3) trabalhar menos, produzir menos, consumir menos não são bons objectivos a encarar num horizonte desejavelmente mais sustentável? Sob o mito da preguiça o que se esconde é outro mito: da desenfreada corrida pelo crescimento para a qual todos somos mobilizados.
4. O mito do consumo ajuizado
Há, finalmente, um último mito, sobre o dispêndio de rendimentos, e que reza que só é bem gasto o dinheiro de quem o ganhou a custo. De outro modo, obtido sem trabalho esforçado, é mal gasto, em consumismo destemperado. Ora, se bem analisada, esta associação não faz sentido. O que determina o gasto do rendimento disponível é uma hierarquia de necessidades, sejam básicas sejam artificiais, em todo o caso muito mais resultado de uma sensibilidade social partilhada do que de escolhas individuais, muito menos relacionadas com a fonte dos rendimentos de cada um.
Não deixa de ser verdade que o custo afundado pesa nas decisões de consumo. As escolhas ajustam-se menos facilmente à volubilidade da hierarquia de necessidades quando são escolhas com esforço associado. Como quem acaba por fazer algo que já não é a sua preferência actual porque fez nessa preferência agora preterida um importante investimento de esforço. Mas estas são duas situações diferentes que não devem ser confundidas. A volubilidade das preferências, que nem sequer é individual, não é determinada pela maior ou menor facilidade de obtenção de rendimento.
Ainda assim, não seria recomendável haver um travão à volubilidade do consumo? E se sim não seria recomendável que a perseverança nas escolhas fosse assegurada por uma maior sensibilidade aos custos afundados através da obtenção de rendimento pelo esforço do trabalho assalariado?
A resposta a estas duas perguntas não é tão simples quanto fazem parecer as perguntas, nem sequer necessariamente afirmativa, como veremos. Em primeiro lugar, a volubilidade de consumo é uma consequência das necessidades artificiais ou tornadas artificialmente prioritárias, que forçam um consumo desnecessário, e não à maneira como trabalhamos ou como obtemos rendimento. Na verdade, nem sequer é a mudança de preferências que constitui problema, mas aquilo que a induz. A mudança de preferências pode estar bem ou mal justificada, mas não há nela nada de errado a priori, pelo que a perseverança em escolhas que já não correspondem às preferências não é necessariamente uma boa escolha.
É claro que a ideia de volubilidade denuncia uma sedução ardilosa pouco justificável. Mas, então, é a causa, a montante, que deve ser atacada e não os cidadãos. De outro modo, tornam-se duplamente vítimas: compelidos ao consumo imposto como se fosse básico, compelidos ao esforço do rendimento imposto como se só assim se ativessem ao genuinamente básico. Nem uma coisa nem outra são verdadeiras.
Mas podemos levar as questões ainda mais longe. Mesmo que as prioridades de consumo não fossem determinadas pela prioridade das necessidades, mas pela forma mais ou menos difícil como foi obtido o rendimento disponível para consumo, não é muito aceitável que se fizesse de uma certa determinação do que são escolhas de consumo “correctas” uma razão suficiente para preferir rendimento obtido com mais esforço a rendimento obtido sem esforço. Que paternalismo se dispõe a determinar o que são escolhas de consumo certas?
O trabalho assalariado socialmente generalizado sempre foi a outra face de um Estado paternalista, capitalista ou anti-capitalista, que se recusa a conciliar vida activa dos concidadãos e emancipação. Já para não falar da hipocrisia que é um Estado paternalista que castiga cidadãos consumidores mas não questiona a produção desenfreada de oferta de consumo imposta de forma quase compulsória à sociedade.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.