A Catalunha voltou a sentir a repressão do Estado Espanhol. Um Estado que tem história e credenciais nessa matéria. Usando uma metáfora, podemos caracterizar a relação entre o Estado Espanhol e a Catalunha como um casamento infeliz, em que uma das partes com sinais de distúrbios psíquicos não aceita falar sobre o divórcio e maltrata a outra parte. Como dizia um famoso militar espanhol, o general Espartero (foi Duque e regente durante o reinado de Isabel II de Espanha): “para que Espanha ande bem, temos que bombardear Barcelona a cada 50 anos” (em 1842 bombardeou a cidade).
O referendo de 1 de Outubro (1-O) foi uma importante jornada de mobilização cívica e política. A sua preparação envolveu diversos tipos de obstáculos: detenção de pessoas envolvidas na organização, caça a urnas e boletins de voto, bloqueios na Internet, processos judiciais a alcaides, ameaças a voluntários, etc. No dia da votação perante a brutalidade policial manifestou-se a dignidade e a coragem de um povo. Quase 900 pessoas ficaram feridas, aproximadamente 400 colégios eleitorais foram encerrados e dezenas de milhar de votos confiscados pela polícia. No entanto, apesar da repressão realizaram-se votações significativas em muitos outros colégios e obtiveram-se resultados: mais de dois milhões de catalães votaram (43% dos votantes) e cerca de 90% votaram sim à independência.
Dizem-nos que o referendo era ilegal. As leis sempre reflectiram as relações de dominação (entre classes sociais e entre nações) existentes numa dada sociedade e época histórica. Importa aqui referir que o governo catalão tentou várias vezes negociar com o governo espanhol uma solução e que um referendo consultivo poderia ser realizado no actual quadro constitucional espanhol. No entanto, a maioria dos partidos políticos espanhóis (ex. PP, PSOE e Ciudadanos) recusa apoiar essa hipótese ou apoiar uma reforma constitucional que garanta um referendo vinculativo na Catalunha, que é segundo sondagens desejado por mais de 80% dos catalães. Perante as sucessivas recusas avançou-se com o referendo de forma unilateral. O Tribunal Constitucional determinou que o referendo era ilegal. O que significa que os seus resultados não podiam ter efeito jurídico. Mas isto não significa que o Estado devia impedir pela força a realização do referendo. Pelo contrário a acção do Estado colidiu com os direitos cívicos e políticos dos catalães.
A questão mais do que jurídica é política e ética. O ordenamento jurídico internacional (há interpretações diferentes) e espanhol deviam reconhecer o direito à auto-determinação da Catalunha. Os catalães são um povo com língua, história e identidade colectiva própria. O direito pode mudar e deve evoluir. Infelizmente, o direito e a sua interpretação mudam mais em função de interesses económicos e políticos, do que éticos. Por vezes coincidem. Assim aconteceu em matéria de descolonização, que interessava a vários níveis aos poderes dominantes da época (Estados Unidos e União Soviética). Podemos confirmar nas últimas décadas que referendos independentistas são apoiados e reconhecidos quando convém e o contrário quando não convém. Não foi por coincidência que Mariano Rajoy visitou Donald Trump, dias antes do referendo 1-O.
É fundamental que haja diálogo e mediação internacional para resolver este conflito. As aspirações da Catalunha devem ser reconhecidas a nível internacional. A União Europeia ou a comunidade internacional não devem abandonar os catalães à sorte da repressão policial/militar e judicial do Estado Espanhol. Não podemos aceitar que a “Marca Espanha” se transforme na “Prisão Espanha”.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.