O que tem a ver a cara desesperada de Madonna no Instagram com a burocracia portuguesa e o fracasso no combate aos trágicos incêndios deste verão prolongado? À partida, nada. Na verdade, tudo.

Obviamente que a tragédia dos incêndios que destruiu tantas famílias e bens nunca pode ser comparada com o facto de uma popstar mundial desesperar para obter um visto de residência em Portugal. No entanto, ao mesmo tempo, e passe as enormes diferenças de gravidade, tem tudo a ver com o funcionamento do Estado português e a sua burocracia corrosiva.

Por mais simplexes que se façam, Portugal continua a ser o Estado do papel e da ditadura dos pequenos grandes poderes, incapazes de ter flexibilidade para lidar com situações diferentes. Incapaz de dotar as suas estruturas dos melhores recursos, porque os sucessivos governos preferem quase sempre ajudar os seus.

Pelos vistos, o plano de prevenção e combate aos incêndios faz-se em janeiro. E no frio de janeiro alguém decidiu que a fase Charlie duraria até 30 de setembro. Até aí tudo normal. O anormal sucede quando chegamos a outubro e toda gente percebe que o verão, em vez de acabar, acentuou-se. E o que é que aconteceu? Nada! Em janeiro decidiu-se que assim seria e assim ficou. Infelizmente, o dia mais dramático de incêndios ocorreu a 15 de outubro e, pelo que se constata, o Estado não estava preparado para proteger os seus cidadãos. Não digo que seria diferente se alguém tivesse prolongado a fase Charlie por uns míseros 15 dias, mas assim fica uma dúvida intransponível: será que o Estado fez tudo o que estava ao seu alcance para proteger o país? Dúvidas destas minam a confiança nas instituições.

Voltamos a Madonna. Uma das maiores estrelas de todos os tempos, com uma projeção global incalculável, escolheu Portugal para viver. Cada post seu numa rede social leva o nome, as imagens e a projeção do país mais longe do que qualquer campanha do Turismo de Portugal. Ela é hoje uma das maiores, e quiçá mais improváveis, embaixadoras deste país periférico. Portanto, não tenho dúvidas que qualquer outro país entregaria numa bandeja, com pompa e circunstância, o visto de residência a Madonna. Como se fosse “touched for the very first time” por um país. Ora, neste local fantástico para viver, mas não raras vezes um “Portugal dos pequeninos”, o processo de Madonna estará entregue à burocracia das pessoas normais. Nós não somos todos iguais, nem devemos ser. E o Estado tem obrigação de ter mecanismos flexíveis para tratar essa diferença, sob pena de se perderem oportunidades extraordinárias para o país.

Está visto que, deste Governo só podemos esperar o mesmo de sempre. Se o anterior fez cortes cegos e sem critério na Função Pública, este repõe rendimentos cegos e sem critério. Reformas? Zero. Por exemplo: provavelmente, se o modelo não fosse sempre o do “pão para todos”, Portugal poderia suportar o custo orçamental de ter um modelo de bombeiros profissionais e com meios suficientes, em vez de depender da extrema bondade e coragem de voluntários que dão a vida por todos nós.

Este espírito reinante de “sempre foi assim e sempre será” é o que nos deve revoltar.