Numa tarde soalheira de domingo, desde o estreito parapeito de uma varanda do Largo de Santo Estevão, virado para o centro de uma ampla sala e ladeado pela luz colorida de Alfama e pelo azul intenso do Tejo, assisti a um magnífico concerto da cantora e compositora cabo-verdiana Mayra Andrade. Com um repertório de influências africanas, lusófonas e latinas, Mayra Andrade encheu a sala de sensibilidade, de histórias e de referências geográficas, culturais e afetivas.
Foi a minha primeira presença no Living Room Sessions, um conceito inovador desenvolvido por Ricardo José Lopes e Joanna Hecker que promove concertos não lucrativos em casas particulares em Lisboa, num ambiente autêntico e exclusivo, fomentando a convivência intimista entre músicos e espetadores. O Living Room Sessions é apenas um exemplo da riqueza cultural que está a explodir em Lisboa e um pouco por todo o país.
A voz de Mayra Andrade e aquela bela sala com vista para o Largo de Santo Estevão e para o Tejo reavivaram-me o sentimento de orgulho pela minha cultura e pela minha cidade, que parece estar hoje estampado no rosto de todas as pessoas com quem me cruzo. Parece impossível conjugar o atual bom momento nacional com a recente crise económica e a consequente perda de autoestima que vivemos.
Este sentimento de confiança é, do meu ponto de vista, mais do que um efeito sazonal do fim da crise e da retoma económica. É mais do que Cristiano Ronaldo, do que o Campeonato Europeu, do que a Eurovisão e do que Guterres na ONU. Trata-se sim, de uma mudança estrutural na forma como os Portugueses olham para si e como o mundo olha para os Portugueses.
Nas minhas viagens ao estrangeiro desde muito novo, o desconhecimento de Portugal e os comentários condescendentes causavam-me tristeza e insegurança. Habituei-me ao pessimismo e à falta de autoestima como forma de ser português. O complexo de inferioridade não se refletia apenas na convivência com estrangeiros, era também visível nas nossas cidades, na nossa arte, nas nossas empresas… Voltámos as costas aos centros históricos e passámos a viver em prédios novos e modernos para imitar o american way of life. Ouvíamos exclusivamente música anglo-saxónica e o Português cantado soava mal. O fado era uma música menor.
A crise mudou as mentalidades, em particular as das novas gerações. Muitos tiveram de emigrar para sobreviver, voltando passados anos com mais mundo e ideias novas para implementar. Os que ficaram tiveram de ultrapassar a inveja e o “bota-abaixismo” e passaram a colaborar de forma construtiva para superar as dificuldades e criar valor. Não foram só os empresários e os políticos a mudar o estado de coisas. As comunidades, as famílias e os artistas tiveram de procurar novas formas de trabalhar e de expressar os seus talentos e convicções, sem poder contar com o habitual apoio do Estado.
Os Portugueses tiveram de superar os seus complexos e reencontraram dentro de si a sua identidade. Não se trata de um nacionalismo bacoco, pelo contrário, trata-se de interculturalismo fundado na ligação à Europa, África e Brasil, de riqueza da língua, da beleza da arte, de vitalidade das nossas cidades, da simpatia da nossa gente, da nossa facilidade para as línguas, da nossa tolerância para com os outros, do nosso rigor e dedicação ao trabalho, atributos que sempre tivemos, mas que escolhemos esquecer e só agora, quando nada mais nos valia, passámos a valorizar.
Este novo magnetismo português que está a gerar investimento nas nossas cidades e empresas, que está a atrair artistas, estudantes, empreendedores e criadores de todo o mundo não é um resultado das decisões do Terreiro do Paço ou da conduta das nossas elites. É um mérito coletivo que radica no valor da nossa cultura. É este magnetismo cultural que atraiu famosos como Madonna, John Malkovich ou Michael Fassbender e que está a atrair milhares de turistas todas as semanas.
É por esta razão que é o momento de empresários, governantes e elites apoiarem a cultura Portuguesa. Será sem dúvida a maior contribuição que poderão dar para a criação de valor a longo prazo. É necessário apoiar as nossas instituições culturais e os nossos artistas, e terminar com essa visão tacanha e provinciana que olha para a cultura como o parente pobre.
Um dos nossos problemas históricos tem sido o abandono da nossa cultura. O nosso futuro passa por recuperá-la, valorizá-la e partilhá-la.