Com a digressão propagandística em que o Presidente Marcelo explora incessante e desavergonhadamente o sofrimento das vítimas dos incêndios de há duas semanas e os subsequentes arrufos do Governo de António Costa com a Evita de Belém, intervalados pelo circo em que os deputados transformaram a moção de censura ao Governo apresentada pelo CDS, passou relativamente despercebida uma notícia que merecia maior atenção: a UTAO veio avisar que, em 2018, as chamadas “cativações” no Orçamento do Estado ascenderão a cerca de 1.776 milhões de euros, dos quais pelo menos 590 milhões deverão mesmo ficar “congelados”.

É uma notícia que se limita a confirmar algo que quem tenha passado os últimos dois anos acordado já há muito percebeu: o Governo de Costa até pode ter “virado a página da austeridade”, mas o livro continua bem aberto. É verdade que funcionários públicos e pensionistas que haviam perdido rendimentos na longa noite passista foram agora abençoados com os respectivos aumentos e, no caso dos primeiros, o fim dos cortes no pagamento de horas extraordinárias ou da tributação dos subsídios de refeição; que a actualização do número de escalões do IRS permitirá baixar a taxa dos escalões mais baixos; ou que se prevê um aumento do “investimento público”, ou seja, do dinheiro que os partidos que se vão revezando no poder transferem para grupos amigos sob a pretensão de que se destina a “projectos” de “interesse estratégico”.

Mas convém não ignorar que, para que essas medidas agradáveis possam ser tomadas, outras mais agrestes (mas menos perceptíveis à primeira vista) precisam de as acompanhar: o IRS para os trabalhadores “a recibo verde” aumenta brutalmente; os impostos indirectos aumentam em 4,6% em relação ao ano anterior (os directos baixam apenas 1,2%); enquanto que a descida do IRS não beneficia os mais pobres (que não têm rendimentos para pagarem esse imposto), a subida de impostos sobre o consumo de produtos que permitem ao Governo fingir estar preocupado com “a saúde” dos portugueses não isenta os que menos têm do fardo financeiro que acarretam para as carteiras dos portugueses.

E como nem medidas deste género bastam para impedir que o valor oficial do défice (o real é maior ainda) expluda, o Governo é obrigado a “congelar” as “cativações” despesas em serviços públicos como a Saúde e que degradam a sua qualidade (degradação essa que o Governo procura esconder aldrabando os números das listas de espera).

Ao contrário do que algumas almas mais optimistas, ingénuas ou desonestas gostariam de crer ou de nos convencer, este não é um problema que se deva a uma qualquer “obsessão com o défice”, nem que se ultrapassaria se “a senhora Merkel” deixasse o Estado português apresentar um défice exponencialmente maior. Portugal precisa de equilibrar as suas contas públicas, não por uma deliberação arbitrária proveniente de “Bruxelas” ou de “economicistas” indígenas, mas porque só assim merecerá a confiança de quem lhe empresta dinheiro.

É verdade que, por enquanto, com a nossa economia a crescer e as dos nossos parceiros a crescer ainda mais (um sinal que nos devia preocupar), e com o BCE aparentemente disposto a alimentar uma bolha no mercado dos títulos de dívida soberana, Portugal lá se vai conseguindo financiar. Mas, quando a economia abrandar, a diferença entre o que o Estado cobra em impostos e o que gasta for demasiado elevada para que os nossos potenciais credores acreditem que voltarão a ver o dinheiro que nos entregam, teremos um cenário semelhante a 2011, 1984, 1978, ou muitos outros anos nos séculos anteriores da nossa triste História.

Ao contrário dos vários “bitaiteiros” candidatos a “salvador da Pátria” que todos os dias espirram sentenças nas televisões, rádios e jornais, não faço ideia de qual possa ser a solução para este problema verdadeiramente estrutural – e ancestral – do país. Nem sequer tenho a certeza de que uma “solução” seja algo que possa existir. Mas sei que ela não passará por persistir nos erros de décadas e sucessivos governos das várias cores. E é apenas e só isso que Costa e a sua pandilha estão a fazer.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.