Historicamente, os grandes avanços tecnológicos deram sobretudo origem a grandes mudanças nas condições económicas da existência humana, que logo se reflectiam na maneira como se trabalha ou se é socialmente implicado na produção. Por exemplo, alguém muito influente nos últimos séculos dizia que o moinho manual dá-nos a sociedade com o suserano e o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista industrial. Mas hoje, as mudanças relacionadas com o avanço científico e tecnológico são cada vez mais mudanças nas condições biológicas da existência humana, mesmo nas suas condições mais básicas: o nascer e o morrer.

No nascer, a reprodução médica assistida poderá dispensar a necessidade da gravidez e do dar à luz, como já dispensa hoje o modelo de família com mãe e pai. E no morrer, uma sociedade que prolonga tecnologicamente a longevidade não pode deixar de se confrontar, de forma cada vez mais premente, com a necessidade de admitir a morte voluntária. No futuro, biologia e economia, genética e capitalismo, técnica médica e tecnologia terão de ser pensadas em muito maior interdependência, desde logo porque nos colocam no horizonte novas formas de dominação — mas também de resposta emancipatória.

As questões da vida e da morte sempre foram nucleares para a filosofia. Basta recordar Cícero, para quem a filosofia era somente uma preparação para a morte, ou Montaigne para quem aprender a morrer deveria ser uma prática do viver. Estas questões também são nucleares para a religião, que depressa toma partido nos debates éticos de forma mais ou menos ortodoxa. Num espaço público plural todas as formas de sentido argumentadas devem ter lugar, mas o que é novo e importante aqui é reconhecer que estes debates vão tornar-se mais relevantes, num plano ético, mas também num plano social e político, dada a grande transformação tecnológica das condições biológicas da existência humana — que está apenas no princípio.

O que hoje é só um prolongamento assistido da vida pode, no futuro, vir a ser vida prolongada indefinidamente. Talvez baste para isso que se consiga cancelar o gene do envelhecimento. Nesse dia, a loucura de que falava Montaigne em se chorar por daqui a cem anos não estarmos vivos, deixará de o ser. Ou não, pois não é difícil perceber que uma vida assim ilimitada se tornará uma vida que perdeu o sentido. Uma vida sem termo é uma vida que prescindiu do irreversível, do valor da escolha que sacrifica outras e assim traça um destino singular, é uma vida sem o sentido das escolhas, em suma, uma vida que perde sentido. Simplesmente, este mundo social em que vivemos de forma cada vez mais global deseja-se, como uma utopia, um lugar onde tudo pode ser trocado, a começar pelos desejos, a que se associa uma ideia de liberdade de tudo experimentar.

Num mundo social assim, o irreversível não tem um bom lugar. É tomado como ingrediente da violência, na verdade o seu traço mais danoso — acontecer algo que já não pode ser revertido. Um dos filmes mais violentos de toda a história do cinema, de Gaspar Noé (2002), chamou-se exactamente ‘Irreversível’. E é também a essa luz que é pensada a morte, por excelência o nome do que não pode ser revertido. Por isso, este mundo social nosso contemporâneo que bane o irreversível bane também a morte. Mas este é o caminho para uma utopia ou para uma distopia?

É necessário levar o debate sobre estas questões para um plano de cidadania,  analisando não apenas as suas dimensões éticas, mas também as culturais e políticas. A este respeito, é de chamar a atenção para a excelente iniciativa do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, com o patrocínio do Presidente da República, de um ciclo de debates intitulado “Decidir sobre o final da vida”, que estão a ter lugar desde há meses, envolvendo de forma bastante alargada sectores sociais, profissionais, culturais, religiosos.

A vida e a morte são duas condições recíprocas e, parafraseando Montaigne, que loucura é essa de nos maravilharmos por ver nascer e, ao mesmo tempo, contristarmo-nos com a morte. Com a morte súbita, inesperada, violenta, sim. Mas com a morte num horizonte de sentido de vida que se cumpre, não. Por isso, numa sociedade que prolonga artificialmente a vida, a possibilidade de a recusar tem de ser uma questão de cidadania que nos implica a todos. Não apenas diante dos casos dolorosos onde a doença incurável não tem um tratamento que possa ser interrompido, o que escandaliza a nossa sensibilidade por não se fazer a vontade de uma morte compatível com uma vida digna. Mas também como uma faculdade, não judicializada, de cada um de nós querer decidir-se pela morte voluntária. Pode nem sequer constituir um direito positivo, apenas uma capacidade, não conflituando com um dever de viver, que também não deve ser pensado tanto de cada um dirigido a si próprio, como de cada um querer sempre que os outros vivam, uma vida em que prevaleça a vontade genuína, persistente e incondicionada dos próprios.

Numa sociedade de centenários que se adivinha é razoável que se tome como normal e humano a preocupação de cada um decidir quando e como deixará de querer prosseguir, por razões de vida, a vida. E não a prosseguir apenas por razões mortas.

Ao contrário do que se representa, a violência na nossa época de vida de mercado não está no irreversível que ela abomina, mas na dominação que insulta a autonomia da pessoa humana. Dominação pela instalação da tutela sobre o “decidir” que derradeiramente subtrai ao indivíduo — logo acusado nas teias do individualismo — a capacidade de decidir sobre o final da sua vida. E também dominação pela biologização da vida humana, conferindo maior centralidade à sua dimensão biológica, condição necessária mas não suficiente, essencial mas não essência do viver.

A vida humana é uma vida de crescimento. Mas esta é só mais uma das palavras raptadas para uma mobilização que leva as nossas vidas para dentro de um dispositivo de dominação. O sentido de crescimento que se impôs para as vidas adultas nada tem que ver com amadurecimento, ou com o “tornar-se pessoa” de que falava o grande psicólogo humanista Carl Rogers, mas acumulação, sem nada de transformação, nada de genuíno crescimento, uma espécie de tempo presente detido e prolongado no resto de uma vida aumentada. É um desequilíbrio que faz eco do desequilíbrio que é o da própria economia que só se sustenta se crescer imparavelmente, até à derrocada final.

O reverso da cultura de vida é uma cultura de morte, mas esta pode ter muitas facetas, uma delas é a que mata a vida no seu viver, irreversivelmente marcante, outra é a que a substitui por um sucedâneo chamado consumo de experiências, ainda outra é a que enquadra isto numa vida económica insustentável.

Fica isto em jeito de reflexão pelo Feriado em que a morte, no que não tem de religiosa, se tornou em uma conveniente festa de bruxinhas e rebuçados.