É uma afirmação demasiado ampla para a realidade, especialmente por duas razões: em primeiro lugar, porque a Justiça é feita por pessoas e, como sabemos, somos feitos de múltiplas imperfeições e quem tem esta enorme responsabilidade de fazer Justiça é tão humano como todos nós; em segundo lugar, porque em Portugal temos um modelo frágil em termos de escrutínio democrático e fiscalização do sistema. Para além da absoluta autogestão, privilegia-se mais critérios de antiguidade, quantitativos e burocráticos do que propriamente critérios de mérito. Assim, um juiz ou procurador excecional é facilmente tratado da mesma maneira do que outros medíocres e que dificilmente teriam sucesso no setor privado competitivo.
Aquilo que torna a Justiça confiável ou não é a aplicação do Direito. Uma Justiça que aplica objetivamente o Direito é confiável. Uma Justiça que manifesta estados de alma e opiniões subjetivas é arbitrária. E um Estado de Direito como o nosso, garantido por uma Constituição democrática, tem razões para confiar na Justiça enquanto o critério das decisões, for única e exclusivamente, a Lei. O problema surge quando os estados de alma dos julgadores ou o “marketing” do sistema de Justiça começam a concorrer ou mesmo a sobrepor-se ao Direito. Isso mata a Justiça democrática e torna-a medieval, ainda que com aspeto de modernidade.
Felizmente, tenho constatado que a maior parte dos protagonistas da Justiça é merecedora da enorme responsabilidade que tem e da confiança dos cidadãos, mas há sinais preocupantes que não podem ser ignorados.
As citações bíblicas e considerações pessoais sobre a mulher adúltera numa decisão de um Tribunal superior em Portugal são um recente exemplo chocante e hilariante que surpreendeu quem achava que tal não poderia acontecer no Século XXI. Acontece. E quem convive diariamente com o sistema sabe que há mais exemplos de estados de alma em decisões. Desde logo, nos casos mediáticos e que apaixonam as massas. Nestes, assiste-se a uma crescente e cada vez mais perigosa “descontração” na aplicação do Direito e dos princípios fundamentais que devem ser garantidos a todos os cidadãos. Parece que o que interessa cada vez mais é fazer opinião, agradar às redes sociais e às caixas de comentários dos jornais. É fazer marketing.
Começam a ser frequentes as sentenças exemplares com considerações pessoais, morais e subjetivas sobre os casos ou até abordagens filosóficas sobre o bem e o mal. Percebe-se também que o sistema tem cada vez mais preocupações com a sua própria imagem pública do que com o julgamento objetivo e sereno dos casos concretos. Claro que há várias exceções, mas os que arriscam não navegar nesta onda precisam de ser muito mais corajosos e trabalhadores do que os que, pura e simplesmente, aderem ao que é popular.
Uma das grandes conquistas da humanidade foi o fim da justiça de pelourinho. Foi o nascimento do Estado de Direito. É bom que os protagonistas da Justiça nunca se esqueçam disso.

O autor escreve segundo a antiga ortografia.