Já vamos estando habituados a actos de violência e barbárie quase quotidianos e mesmo o facto de nos entrarem porta dentro à hora do jantar, aterrando em pleno prato, não nos tira o apetite nem nos escandaliza ou indigna muito. É a perversidade dos actos repetidos que nos deixa a médio prazo, imunes e indiferentes. Isso e a distância. Ataques em escolas, em lugares de diversão ou de culto de forma gratuita, eram peliculas Norte Americanas, transpostas para a realidade, mercê da permissiva lei das armas. Já apenas nos provocava um encolher de ombros passivo.
Mas a última semana veio pôr a nu algo que muitos sabiam, testemunhavam e de que eram vitimas: Portugal não é imune a esta vaga de violência sem medida e sem razão.
O que sucedeu em Coimbra e à porta dum local de diversão nocturna da capital, veio acabar com todas as ilusões do país tranquilo e de brandos costumes que teimávamos em acreditar. As cenas filmadas amadoristicamente mostram não apenas uma violência extrema e uma total ausência de respeito pelo ser humano – em ambos os casos as vítimas continuaram a ser agredidas muito depois de se encontrarem caídas e indefesas – como uma outra perversidade: a necessidade de tudo gravar, de registar, de documentar e partilhar nas redes sociais. Esta febre que nos transformou em proto jornalistas, proto realizadores, afasta-nos cada vez mais do dever de cidadania, de humanismo e resume o nosso mundo a um pequeno ecran que guardamos no bolso.
Repare-se no sucedido em Coimbra. Há gritos duma mulher que pede que se chame a polícia, que se intervenha, que se acuda ao homem que continua a ser espancado barbaramente. Passam minutos antes de se ver alguém acorrer ao chamamento, a intervir. O mesmo sucede à porta da discoteca. Poder-se-á argumentar que intervir é um risco, que nunca se sabe quando os indivíduos estão ou não armados, que estamos perante gangs, que afinal existem máfias a actuar em Portugal… E lá se vai o sonho do jardim paradisíaco plantado à beira-mar.
Mas socorrer, retirar a vítima e protege-la se calhar não é um risco assim tão grande, se calhar é apenas a nossa indiferença a falar mais alto. Claro que, a documentação do acontecimento, a partilha de imagens também é uma forma de intervenção e acaba por resultar por vezes numa solução real e efectiva.
Mas isto levanta outras questões: estará a segurança e a justiça nas mãos das partilhas e dos “likes”? Teremos um BigBrother facebookiano que tudo vê, tudo relata, tudo partilha, comenta, julga , condena sem mover nada mais que um dedo? Onde fica então a parte humana, a que intervém de facto, a que está lá para o outro? E que dizer de instituições que apenas actuam em reacção perante uma opinião pública ululante?
Casos de juízes que julgam ainda com base em Códigos do Séc. XIX e que após várias vidas certamente arruinadas devido a sentenças proferida acabam por ser alvo de inquérito, de discotecas que encerram portas após mais duma trintena de queixas vãs e tantos outros, acabam por ser resolvidos por pressão das redes sociais, dos media e da opinião pública.
Mas o espaço público, a praça, não pode substituir-se às instituições!