Portugal não tinha florestas de tipo nórdico ou tropical e o interior tinha pouca gente. Foi preciso povoar e plantar. Havia sobrados, matas e pomares de várias espécies autóctones. O rei Sancho I, filho de Afonso I de Portugal, que começou por se chamar Martinho por ter nascido no dia de Saint Martin, bispo de Tours (soldado húngaro do exército romano que emigrou para França), recebeu o cognome O Povoador porque promoveu o povoamento das Beiras e Trás-os-Montes com emigrantes flamengos e borgonheses. A plantação do pinhal de Leiria terá começado ainda no tempo de seu neto, Sancho II. Quando, no ano seguinte à sua morte, em 1248, Silves foi conquistada definitivamente pelos portugueses, já os pinhais daquela região algarvia tinham sido consumidos para a construção naval, habitação e energia.
A madeira era a principal matéria prima para a habitação, mesmo em grandes cidades como Londres, embora fosse ilegal a construção de casas em madeira. Em 1666, 80 mil londrinos ficaram sem habitação quando o Grande Incêndio se propagou rapidamente e destruiu 13.200 casas. Naquele tempo, os fogos urbanos combatiam-se demolindo casas para estancar a sua propagação. Ardeu quase toda a área ocupada pela antiga cidade romana.
Minha mãe lembra-se de Monsanto sem árvores e eu lembro-me da Serra do Caramulo, onde em criança passei muitas vezes parte das férias de verão, quase sem árvores. Depois as árvores foram aparecendo, pinheiros e também eucaliptos, mas o granito da serra persistiu em manchar a encosta. Depois, há uns vinte e tal anos, um grande incêndio consumiu quase todas as árvores da vertente sul da serra. O fogo destrói mas também regenera. Poucos anos depois, o granito já só se vislumbrava mais perto do cume, onde está o Cabeço de Neve. A serra ficou ainda mais coberta de árvores, num denso matagal só possível percorrer à catanada.
O fogo despertou um fúria arbórea, viral e desordenada, e fez desaparecer o idílico percurso, serra acima, até ao ribeiro cujo leito era ladeado por muitos moinhos de água – tão límpida, fria e delicada, que se bebia vinda não se sabe de onde, mas tão poderosa que fazia rodar enormes cilindros de pedra que moíam, sobre outro cilindro imóvel, milho e outros cereais. Era um espetáculo imemorial, fascinante, de um modo de vida tão antigo quanto o moinho de água, e que servia em partes iguais todos os sentidos provocando sensações que perduram em memórias nostálgicas: o aroma do cereal, o ruído da pedra esmagando os grãos, a água brilhante e rápida percorrendo e caindo das condutas de madeira, o cilindro de pedra rugoso por cima e macio por baixo.
Os elementos da natureza, o fim da sociedade agrária e a emigração para França e Luxemburgo – afinal um regresso às origens – destruíram aqueles testemunhos históricos. Agora, restam as ruínas dos moinhos inertes há muitos anos, e a água quase desapareceu também dali. Neste verão quente de 2017, felizmente, graças à exclusiva ação da população local (que apanhou pelo menos um incendiário em flagrante), o fogo poupou aquela aldeia que, vista da serra, é hoje uma mancha verde isolada na paisagem cinzenta. Se e quando vier chuva, ocorrerá nova erupção verde.
As chamadas “florestas” de eucaliptos, que são afinal matagal de tipo austral, são um fenómeno do século XX e resultaram na industrialização do chamado “interior” e numa valiosa indústria exportadora. Conta-se que Rupert Murdoch, de visita a Lisboa nos anos 80, julgou estar na sua nativa Austrália quando percorreu de carro a A5. Terá sido a pobreza e a miragem do lucro fácil que contribuíram para a plantação por milhares de pequenos proprietários de terras pedregosas, desordenada mas rentável, de árvores em serras que antes não davam nada. Era só deixar crescer e vender os finos troncos de eucalipto passados uns dez anos. Muitas árvores terão nascido de geração espontânea, como naquela serra. No intervalo, familiares emigrados e a secular horta em pequenos terrenos garantiam a subsistência.
São de há muito conhecidos os benefícios económicos das cidades. Pergunto-me se faz algum sentido económico, social e cultural reconstruir as casas ardidas nos locais isolados onde antes estavam e repovoar as zonas ardidas? Algumas das casas terão agora sido reconstruídas mais perto de estradas. Mas, não seria mais eficaz sob todos os pontos de vista promover o desenvolvimento de aglomerados urbanos maiores, mais protegidos e mais solidários, com o comércio, indústrias, escolas e serviços próprios de cidades? Para além de todos os planos para a “reforma da floresta”, não seria de aproveitar a oportunidade para reformar e reordenar também o povoamento do território? É provável que Sancho I, O Povoador, outorgasse foral a essa forma atual e inteligente de povoar o território.