Em 1987 Fausto cantava a “querida Europa” que não era aquela dos mercados nem dos mapas cor-de-rosa. Passados 30 anos, de encantamento e de muitos desencantos, os europeus passaram a classificar o seu continente de outra maneira. Hoje ouvimos mais falar de uma “velha Europa”. Mas as características velha e querida ainda se podem juntar numa mesma frase?

Olhando o percurso da Europa parece que sim. Este continente prenhe de turbulência e de processos traumáticos foi também o berço de ideias e experiências políticas e sociais muito interessantes. E em Portugal, como vivemos a Europa? Decerto com melhores olhos que há um par de anos, em que os efeitos da troika tiravam parte da esperança que existia entre nós. Aliás, a receção maioritariamente positiva da eleição de Mário Centeno como presidente do Eurogrupo é disso testemunho. Apesar dos alertas da oposição, neste momento até parece que a Europa reconhece que a mudança de políticas em Portugal surtiu um efeito positivo.

Mas talvez todos tenhamos razões para olhar positivamente a Europa. Por exemplo, pelos seus contributos intelectuais para o debate de ideias na sociedade. Evoco aqui duas publicações muito recentes saídas da lavra da Editora Guerra e Paz.

A primeira, Cartas 1925-1975, entre Hannah Arendt e Martin Heidegger, que contém a correspondência trocada entre os dois filósofos, num tempo amantes, noutro oponentes políticos, separados pela Segunda Guerra Mundial, e noutro tempo ainda amigos e cúmplices intelectuais. Este livro possibilita-nos acompanhar a relação entre dois grandes vultos da filosofia do século XX mas, acima de tudo, transporta-nos para um contexto de partilha e de oposição que nos leva a acreditar que, querendo, se conseguem ultrapassar dificuldades e divergências na procura de um elo comum.

O outro livro, O Que fazer?, escrito em 1863 por Nikolai Tchernichévski, inspirou os revolucionários do seu tempo e de tempos vindouros. Trata-se de um livro magistral, usando a ironia para levar à máxima subversão, levantando-nos a questão de como pode ter sido tolerado pela censura russa ainda em vigência do Czar. Simplesmente porque era arte, era um romance sobre o amor, e não um ensaio ou texto filosófico que o autor estava proibido de escrever. Ensina-nos este livro que, por detrás da qualidade estética, se pode esconder um forte posicionamento político, espreitando por entre as linhas, afirmando-se nos contextos locais que lhe servem de cenário. Ensina-nos que o génio criativo não tem formato obrigatório nem tipologia proibida.

Que ensinamentos tirar destas duas obras? Que a Europa é possível e que ainda pode ser “querida” e “velha”. Em momentos difíceis, de censura, de guerra e destruição massiva houve quem resistisse pelas ideias e provocasse a mudança, enquanto tentava perceber o que estava mal. Estas obras são testemunhos de resiliência e humanismo. Um exemplo a seguir para termos a Europa que ambicionamos.