O caso singular na história da democracia portuguesa de um governo minoritário PS apoiado pelos partidos à esquerda, que juntos aprovaram três Orçamentos de Estado consecutivos, quando em décadas de democracia nunca tinham aprovado nenhum, revela grande mérito das partes envolvidas e de quem o encabeça, António Costa, mas é acima de tudo fruto de uma circunstância excepcional. Uma maioria social clara reclamou um ponto final na apropriação austeritária do seu bem-estar, do seu futuro e do futuro do país. Acima de tudo, já não se admitia que o ex-Presidente da República condicionasse com os seus fantasmas ideológicos a promoção do bem-comum. Foi derrotado uma vez ao falhar a criação de um Governo, que o Parlamento chumbou onze dias depois de empossado, e de novo é derrotado, repetidamente derrotado, a cada Orçamento aprovado, a cada ano sem rectificações, a cada ano que passa com bons exercícios, com entendimentos a prevalecerem sobre desentendimentos, com os olhos da governação postos na promoção do bem-comum. Até porque a primeira e mais atenta oposição salta de dentro da maioria parlamentar de apoio. Mas os intérpretes da governação são também muito melhores, a começar pelo topo. É só com desconforto, até para os seus correligionários, que o ex-PM é lembrado, dada a contradição dos tempos com ele, contraste que realça a sua fraca figura. Ainda que o passado recente não nos tenha dado muito maior competência. Antecedido por Durão Barroso, Santana Lopes e José Sócrates, Passos Coelho foi mais regra do que excepção.
Mas, a situação excepcional que o país viveu nos meses de outubro e novembro de 2015 — em que uma Assembleia da República se desgovernamentalizou, bateu o pé a um Presidente de saída, e firmou-se como casa da democracia — já não é a mesma. O próprio sucesso da agenda comum que o 21º Governo vai cumprindo deixa-o sem programa. Além disso, dobrada a metade do mandato, é natural que as esquerdas que compuseram a maioria parlamentar de apoio ao Governo — na verdade, mais uma minoria alargada do que uma maioria — precisem de libertar os seus diferendos por ora contidos de modo a reencontrar os seus eleitorados, por vezes sobrepostos. Uma agenda muito concluída e a pressão eleitoral a aproximar-se não devem, contudo, ser tomadas como barreiras, mas motivos para começar a lançar já em 2018, antes de um último Orçamento de Estado, uma agenda de reformas, a apresentar já consolidada às eleições de 2019, quem sabe com soluções governativas mais aprofundadas e inéditas. Se o primeira metade do mandato foi dedicado a reverter o reformismo catastrófico da austeridade, a segunda metade do mandato pode ser dedicada a quebrar outro dos maiores tabus da história democrática portuguesa — de que as esquerdas não sabem ou não querem fazer reformas. Se sabem, querem e podem, então devem.
Podiam ser dez as áreas de reforma, mas há três que avanço em jeito de desafio de debate, sem prejuízo de outras que possam ser igualmente prioritárias:
- Uma política de transportes públicos que tenha a ambição de proporcionar transportes públicos de qualidade para todos e não apenas um serviço de transportes degradado para quem não pode ter outro. E uma política de transportes públicos que promova maior igualdade territorial e social. Do ponto de vista do território, é preciso um investimento com extensão, que deve concentrar-se na ferrovia e renovação da sua frota, ofercendo um serviço com maior qualidade, mais confortável, rápido, a preços convidativos. Hoje, a modernidade já não está em levar o automóvel por uma auto-estrada, luxo insustentável tanto sob o critério das finanças de cada um, como, e mais importante, sob o critério público da melhor utilização de recursos. Do ponto de vista social, é preciso que, nos grandes centros populacionais, em particular a Grande Lisboa e o Grande Porto, seja dada prioridade à criação de oferta de transportes, urbanos e suburbanos, para as maiores concentrações de população e com menos alternativas disponíveis. Os transportes públicos não devem reforçar privilégios de território ou de posição social, devem ir ao encontro da necessidade da maioria onde a maioria vive, e devem ir ao encontro de todas as minorias territoriais.
- Uma política de energia sustentável com duas direcções. Primeiro, uma agenda calendarizada para acabar com a produção de combustíveis fósseis num prazo que pode bem caber todo numa década ou pouco mais. Acabar com o recurso ao carvão mineral e ao gás natural, não começar sequer com a extração petrolífera, em tudo o que depender do Estado e em tudo o que o Estado puder onerar e desincentivar. Isto num calendário que, ultrapassando legislaturas, exige já um compromisso forte e alargado, que não poderá ser obtido em cima de eleições. Segundo, uma política de contenção de oligopólios no campo da produção energética, mesmo e muito especialmente na energia renovável, a única que deve permanecer no futuro. Porque os oligopólios e os monopólios tendem, obviamente, a concentrar também as oportunidades de desenvolvimento, obstaculizando uma democratização da produção energética. Um programa claro em direcção à criação de comunidades energéticas e à produção energética nas unidades habitacionais devia já ser um imperativo da racionalidade ecológica.
- Uma reforma das universidades, necessária a uma sociedade portuguesa do seu tempo, que se pode descrever em três níveis. Primeiro, uma reforma do financiamento público do ensino superior, com uma fórmula transparente, com critérios justos e incentivos estrategicamente lúcidos. Um financiamento reformado das instituições, mas também políticas de financiamento da frequência no ensino superior num país em que o défice de formação superior persiste. Segundo, uma reforma do acesso e da progressão nas carreiras que torne a universidade menos desigual, piramidal, quase uma estrutura de castas. Finalmente, um programa de territorialização da investigação científica, com programas eficazes de fixação de bolseiros e investigadores em toda a rede nacional de ensino superior público.
Ano novo, vida nova, tempo para uma governação de reformas de esquerda.