É natural que a nova disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CeD) suscite divisão, pois promove, em grande parte, interpretações simplistas e subjectivas da complexa realidade social, económica, política e cultural e, na sua ambição doutrinária, ameaça fechar os horizontes dos alunos. Para além de empobrecer a capacidade reflexiva do indivíduo, inculcando-lhe proposições que visam encerrar os assuntos, ameaça reprimir interpretações distintas que possam ter sido desenvolvidas no âmbito da socialização familiar e comunitária.

Ao ser noticiado que dois alunos de Famalicão, com óptimo aproveitamento escolar, voltaram a ser chumbados por falta de assiduidade à aula de CeD, é impossível ficar indiferente, já que estamos perante um conflito entre o Estado e a família dos alunos.

Hoje deparamo-nos com uma estratégia inédita de intenções transformacionais a nível das normas e comportamentos sociais. A “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania” (ENEC) estabelece como obrigatórios, em todos os níveis e ciclos de escolaridade, seis domínios que devem ser abordados: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde – a estes, adicionaram-se outros domínios não obrigatórios, como bonita montra de apresentação ou para desviar a atenção do essencial.

Considera-se ainda, na ENEC que: “…os professores têm como missão preparar os alunos para a vida, para serem cidadãos democráticos, participativos e humanistas, numa época de diversidade social e cultural crescente, no sentido de promover a tolerância e a não discriminação, bem como de suprimir os radicalismos violentos.”

Em síntese, pede-se que os professores se convertam em activistas profissionalizados para transmitirem aos alunos que, por exemplo: o crescimento económico significa aumento de desigualdades que devem ser suprimidas; as instituições e a actividade económica reflectem opressão patriarcal que urge apagar, pois não devem existir padrões distintos de comportamento feminino e masculino; todas as culturas são igualmente apreciáveis, e até louváveis, menos a cultura europeia, que deve redimir-se com punições e confissões eternas; a arena política não deve ter espaço para a contestação e, como tal, todos devem alinhar em uníssono com o poder instituído e, desejavelmente, denunciar os opositores do regime.

Claro que este é o meu resumo que revela a minha interpretação dos conteúdos e os perigos que ali avisto. O que só prova que os temas priorizados em CeD são discutíveis, pois não faltam por aí pessoas que interpretam a realidade, mais ou menos, como eu.

Importa sublinhar que, no Artigo 43.º da Constituição Portuguesa, a alínea 2 estabelece que: “O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.” Daí que a disciplina de Educação Moral e Religiosa seja opcional. Porém, as elites que encontram nas escolas o seu terreno de recrutamento privilegiado – comprovado pela História – atropelam este enunciado cristalino e afirmam que todos os referidos domínios da CeD são indiscutíveis. A novidade não é a acção de doutrinação escolar, a novidade é o atrevimento de se declararem neutros.

Há ainda quem compare a CeD à disciplina de História, para argumentar que todos devem aceitar submeter-se aos conteúdos programáticos desenvolvidos porque a realidade é o que é. Parece-me um argumento fraco que, proferido nestes termos, só deslegitima ainda mais a forma como alguns temas de História são leccionados.

Não é cientificamente honesto que alguém se arrogue no direito de perpetuar uma versão única dos acontecimentos históricos, e muito menos que se vanglorie disso. Essa atitude diz mais das intenções e do carácter dos professores ideólogos, do que propriamente da sua confiança nos conteúdos leccionados.

Tolerar que seja feita uma formatação compulsiva da consciência social, ética e moral segundo os enunciados da cultura “woke” é aceitar que as escolas sejam centros de militância ideológica. Em vez de um ensino integral e faseado, que respeite o equilíbrio entre o desenvolvimento intelectual, físico e social, temos cada vez mais a programação de alunos treinados para viver segundo incentivos à “sinalização de virtude”, presos a um discurso panfletário e gravado na pedra, incapazes de construir juízos próprios.

Veja-se como estão a ser formados alunos convictos, sem convicções. São esses alunos cheios de certezas, mas sem conhecimento sobre a origem das ideias, que entram agora nas universidades, com uma insolência perversa e um espírito delatório face a tudo o que lhes soa diferente.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.