(Finalmente na ilha dourada, Porto Santo, quebro a dieta de lapas, mar e muitas leituras para escrever estas linhas que são de uma revolta imensa. Foi justamente aqui que comecei a aprender que os verdadeiros Comandantes não deixam pessoas para trás. Saí de Lisboa com as imagens dos Talibãs a avançar furiosamente pelo território afegão e cheguei ao Porto Santo com a sua entrada em Cabul. Gravei na minha memória o desespero dos milhares que tentavam a todo custo embarcar num avião qualquer, deixando tudo para trás, da mesma forma que não consigo deixar de pensar na tentativa de êxodo de milhões. Quem foge assim, foge da morte. Seja ela física, seja ela espiritual, seja ambas. E quem deixa para trás pessoas que confiaram o seu destino, que lutaram ao lado, que deram a cara por mudanças que, agora, desapareceram num ápice, não é um Comandante. Ainda que esteja à frente do país com mais poder do mundo. Diria até que principalmente se o estiver.)
Sei que, tradicionalmente, a esquerda se compadece com o que ali passa e tenta justificar aquilo com a independência dos povos, mas não consigo ficar ou indiferente ou procurar justificar o comportamento de uma seita (sim, escrevi-o propositadamente) que prende mulheres em casa, mutila à laia de castigo ou as apedreja até à morte e não lhes permite o acesso à educação mais básica. Ideologicamente, serei de facto de esquerda mas, antes de tudo, sou Mulher. Uma mulher que exerce o direito de sair à rua sozinha e vestida como bem entende sem, sequer, algum dia se ter questionado. Uma mulher que aprendeu a ler, exerce as suas duas profissões e, quando adulta, nunca pediu autorização a alguém para ter ideias próprias.
Se em Portugal exijo direitos para a maternidade, se reclamo por igualdade salarial, se pugno pela equiparação de oportunidades entre os dois sexos, não posso permitir a menor margem de incoerência para quem procura encontrar desculpas quanto ao que já se está a passar no Afeganistão. A ideologia sustenta o Homem, mas não há ideologia que o seja verdadeiramente quando à custa de direitos humanos. E, digam o que disserem, façam as promessas que fizerem, os senhores que compõem o dito Governo têm como última, para não dizer inexistente, preocupação salvaguardar qualquer um dos direitos dos civis que, de alguma forma, relacionem com a sua derrota de há vinte anos.
Poderão dizer-me que se trata da autodeterminação deles, argumento que até aceitaria não fosse o caso de a mesma representar um enorme retrocesso no que é de mais básico em termos de direitos humanos. Na actualidade, o direito à fé de uns nunca se pode sobrepor à vida de outros. Quem julga o oposto, limita-se a usar um ideal para objectivos espúrios.
Acabo quase a dar graças a deus (ou a alguém por ele) porque, se ali tivesse nascido, seguramente mais do que não poder (ou sequer saber…) escrever, estaria hoje morta. E, claro, a pensar que se há uma divindade qualquer que ensine aquilo, promova violência pela pura violência e prometa virgens algures para sexo forçado, então estará mais perto do diabo do que de Deus.
O que temos por adquirido muitas vezes não o está verdadeiramente e é pela inércia que o mal triunfa. A História tem sido pródiga em exemplos e não há memória que um problema deste tipo se tenha resolvido por si e sem ser à custa de incontáveis vítimas. Talvez valha a pena pensar sobre isto, mesmo num intervalo entre mergulhos. Um dia, os herdeiros destes senhores poderão ter a veleidade de conquistar o nosso rectângulo e, aí, não haverá Porto Santo que nos salve a todos.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.