(À laia de disclaimer, não gosto de José Sócrates. Nunca fui admiradora da personagem e acho que os animais ferozes ou se mantêm no habitat deles ou, uma vez trazidos perto dos humanos, devem ser enjaulados. Também não conheço Ivo Rosa e nunca tive qualquer processo com ele. Contudo, as minhas preferências pessoais não me fazem analisar uma decisão em função dos intervenientes e não faço dos tribunais locais de justiça popular.)

 

“Frente a uma situação difícil, o Português opta pela espera de um milagre ou pela descompressão de uma anedota. O grave disto é que o milagre não vem e a anedota descomprime de tudo.” – Vergílio Ferreira

Desde sexta-feira passada que a decisão de Ivo Rosa abre as capas de todos os jornais e é objecto dos mais diversos debates, com invocados especialistas que, sem tempo para a lerem, debitaram toda a sorte de aleivosias sobre a mesma e sobre quem a proferiu.

Volvidas 6.728 páginas lidas, o resumo que consegui fazer afasta-se – e em muito – da opinião da esmagadora maioria dos que trataram de arranjar um espaço televisivo sem ter feito esse exercício.

Para começo, ao contrário do que diz o próprio, não ficou provada a inocência de Sócrates mas anunciada a incompetência do Ministério Público (MP). Importa, pois, assinalar que a decisão não consubstancia um branqueamento total dos alegados comportamentos do antigo primeiro-ministro, remetendo para julgamento factos que, em si mesmos e a serem provados, são indignos de um qualquer titular de cargo público. Por outro lado, é certo, com interpretações com maior ou menor apego à jurisprudência, declarou a prescrição e outras excepções quanto a grande parte da acusação.

Chegados aqui, ao contrário do que é a voz corrente, a questão que se coloca é, menos, a das simpatias do citado juiz e, muito mais, a capacidade extrema que o nosso MP tem de rebentar com tudo o que é processo mediático, enquanto trucida os arguidos, sejam eles quais forem, na fase de inquérito, com fugas de informação científicas.

Dir-me-ão que a Relação tratará de reverter a decisão instrutória, o que admito como possível e até provável. Trata-se do nosso sistema a funcionar. Se não gostam, alteram-no mas, ao contrário do que tem sido a voz corrente a reclamar, não por um caso concreto.

Parece certo que o povo português, ele próprio fechado num confinamento que dura há tempo depois, queria sangue. Não o teve  mas pode sempre aproveitar o tempo para pensar que o que ocorreu aqui é o que sucede todos os dias nos tribunais, com cidadãos anónimos, completamente dependentes do concreto juiz que lhe calhou em sorte.

Vale a pena pensar nisto até porque um dia pode suceder a um de nós. E, aí, a maioria dos arguidos não quer um sistema perfeito mas um que o favoreça a si. O resto são histórias de um país que prima por ser inconsequente mas que mantém ainda assim o humor.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.