Deve o PS fazer uma autocrítica por ter escolhido para líder e apoiado um primeiro-ministro que é suspeito de corrupção e teve um comportamento no mínimo incompatível, do ponto de vista ético, com aquilo que se exige de um titular de um cargo político?
Durante anos, a estratégia da direção liderada por António Costa passou por deixar à Justiça o que pertence à Justiça, impedindo assim que o partido fosse arrastado pelas suspeitas gravíssimas que recaem sobre o seu antigo “menino de ouro”. Para mais quando José Sócrates esteve à frente de um Executivo onde pontificavam o próprio António Costa e vários dos seus ministros, bem como outras figuras de topo do PS que durante anos defenderam o líder das acusações e suspeitas que sempre o acompanharam, desde o caso Freeport ao escândalo da licenciatura e à tentativa de controlo da TVI, entre outras situações que o ex-primeiro ministro explica invariavelmente com alegadas cabalas contra si.
Esta estratégia de António Costa foi bem sucedida e o PS conseguiu evitar o destino do seu congénere italiano e de outras formações políticas europeias que simplesmente desapareceram devido a escândalos de corrupção.
Mas o PS teve aliados tácitos neste processo, pois o establishment político e judicial compreendeu que uma eventual implosão do partido colocaria em causa a estabilidade do sistema e poderia dar origem a uma espécie de “Mãos Limpas” à portuguesa. Esta rapidamente chegaria a outros partidos com responsabilidades de governação no Estado e nas autarquias, porque na política não há virgens e todos têm casos de corrupção no seu seio. Os extremistas de esquerda e de direita seriam os únicos beneficiados. Houve, por isso, um esforço para separar a política da Justiça aos olhos da opinião pública, que deu resultado.
Ao mesmo tempo, o PS foi fazendo o seu distanciamento de Sócrates, com declarações de vários dos seus líderes a questionar a conduta de Sócrates do ponto de vista ético. Esse processo gradual, que levou vários anos, culminou nas declarações de Fernando Medina, esta semana, com o autarca de Lisboa a sublinhar – com razão – que a conduta do ex-primeiro-ministro não foi aceitável do ponto de vista ético, independentemente de ser inocente ou culpado dos crimes de que o acusam. E Sócrates, que respondeu a estas afirmações de Medina com acusações de “canalhice” à direção do PS, acabou por fazer um grande favor a António Costa e ao partido, que passa a ser visto como fazendo parte das fileiras dos lesados do socratismo, algo que seria impensável há poucos anos. Não por acaso, alguns comentadores mais próximos do PS já defendem que os socialistas foram os primeiros a ser enganados por Sócrates.
No entanto, chegámos a um momento em que já não é possível separar completamente a Justiça da política, pois temos um ex-primeiro ministro que vai a julgamento por crimes de colarinho branco, apesar das falhas da acusação. É tempo de o PS fazer a autocrítica de um partido que durante anos apoiou Sócrates e as suas políticas, apresentando-o aos portugueses como um político progressista e de reconhecida integridade ética.
Os líderes do PS podem alegar que foram enganados e que não sabiam da vida privada de Sócrates, mas o certo é que o partido colocou à frente do país um homem que, já depois de deixar o cargo, recebia milhares de euros em envelopes em numerário entregues por um amigo empresário. Isto para nos cingirmos apenas a factos que constam do processo Marquês e que são admitidos pelo próprio.
O país merece esse gesto de humildade por parte do PS, tal como muitos dos seus próprios militantes e apoiantes que hoje se sentem defraudados por uma pessoa a quem confiaram os destinos do partido e de Portugal.
Nota: Esta autocrítica deveria ser acompanhada por uma reflexão sobre de que forma poderão ser evitadas situações destas no futuro. Reflexão esta que não deve ser exclusiva do PS, mas sim de todos os partidos com acesso ao poder.