Numa conjuntura política nacional plena de incidentes e controvérsias e quando estão a ser debatidos temas de importância capital para o nosso futuro coletivo imediato, a última coisa que me ocorreria é que alguém quisesse arrastar as Forças Armadas para mais uma polémica estéril e inútil.
No entanto, os últimos tempos têm sido pródigos em demonstrações de falta de sensatez, de comunicação institucional e até de recato com que determinados assuntos devem ser tratados.
Desta vez foi a polémica em torno da autorização para os paraquedistas entoarem o seu cântico motivacional, “Ó Pátria Mãe”, durante o desfile das unidades militares, no âmbito das comemorações do dia do Exército, em Aveiro.
O assunto parecendo pueril à primeira vista tem, contudo, contornos que são de evidenciar.
A polémica poderia e deveria ter sido evitada pela estrutura de comando, na medida em que deveria conhecer e antecipar sensibilidades e até aproveitamentos endógenos e exógenos.
Não o tendo feito, permitiu que um dia de festa, que deveria ser de homenagem ao nosso Exército e a todos aqueles que combateram, e aos muitos que deram a sua vida, pela defesa da Pátria, fosse manchado por uma questão que não só não faz sentido, como poderia ter sido facilmente evitada.
Esta situação terá sido particularmente injusta para o ministro da Defesa, que teve de suportar manifestações públicas excessivas por motivos, neste caso, a que seria fundamentalmente alheio. Já não é, aliás, a primeira vez. O ministro da Defesa, que conheci profissionalmente em funções passadas, e que tenho como um homem inteligente, sensato, cavalheiro e patriota, tem vindo a ter de suportar várias desconsiderações que não são aceitáveis.
Todos temos noção que a tradição destas unidades entoarem os seus cânticos em desfiles é relativamente recente e que tem uma componente motivacional, interna e externa, com um papel claramente lúdico para a população. O problema é que não importa se são tradições seculares ou de algumas décadas. A partir do momento em que se tornam tradições, vividas e sentidas, sobretudo neste contexto específico, é muito difícil mexer com elas.
Mas este incidente é, sobretudo, revelador de algum mal-estar existente nas Forças Armadas e também de uma dificuldade que permanece no seio do Exército, ao nível dos oficiais superiores, na relação com as designadas Forças Especiais.
Dificuldade essa que teve mais um de uma série de episódios que evidenciam essa tensão.
Não sei verdadeiramente a que se deve a mesma, se à dificuldade de alguns oficiais em aceitarem os símbolos distintivos dessas forças por evidenciarem um tipo de seleção e desempenho que outros não foram capazes de atingir, se ao próprio “bravado” dos elementos dessas unidades, se, ainda, à atribuição quase exclusiva a essas mesmas forças especiais das missões operacionais, algumas de combate efetivo, que o Exército português tem tido por missão desempenhar.
Há, também, quem diga que estas situações ocorrem devido ao mal-estar existente e que é fácil a alguns oficiais superiores agitarem as águas. Sinceramente, não quero acreditar nessa opção.
Aquilo que sei é que as Forças Especiais portuguesas têm sido destacadas para várias missões internacionais, participado em missões de combate, perdido vidas, tudo ao serviço de Portugal, sendo sempre elogiadas pelo seu desempenho.
Recordo-me, aliás, de que na década de 90 do século passado, o Exército não tinha meios para assegurar a projeção de forças necessária para missões nos Balcãs e que foi graças à integração dos paraquedistas no Exército que as mesmas puderam ser asseguradas.
Recordo-me, ainda, das muitas reuniões e discussões em que participei no seio da Aliança Atlântica e outras relativas a zonas de conflito, onde as nossas forças especiais participaram, e em que, por diversas vezes, tive oportunidade de ouvir responsáveis estrangeiros elogiar o comportamento e profissionalismo das mesmas.
No âmbito da NATO, por exemplo, o nosso país sempre foi visto como uma referência no âmbito das Forças Especiais. Utilizando um jargão do mundo empresarial, as Forças Especiais são claramente um nicho de qualificação e diferenciação para as Forças Armadas portuguesas.
Infelizmente, esta questão teve ainda outra consequência, mais perigosa a longo prazo, que foi alimentar o debate político em torno das Forças Armadas e dos seus oficiais generais. Surgiram logo teses, algumas apresentadas por ilustríssimos oficiais, de que havia mão da extrema-direita nesta reação. Outros, em sentido contrário, de que a proibição se devia ao incómodo causado, em certos setores da esquerda, pela letra e mensagem das canções.
Com o devido respeito, alimentar qualquer uma destas interpretações é desvalorizar o essencial que é o sentimento de muitos militares, que ganharam o direito a chamar suas essas tradições, por mais recentes que estas sejam.
O assunto foi encerrado, como tanta coisa no nosso país, com uma pequena farsa para salvar a face, justificando a proibição com o reduzido contingente da unidade paraquedista no desfile e, pasme-se, com as medidas contra a pandemia. Enfim, pena foi que o Presidente da República tivesse dado voz a uma desculpa desse teor.
O Senhor Presidente da República teve, também aqui, mais um momento menos feliz. A sua função como Comandante Supremo das Forças Armadas não deve colocar em causa a cadeia de comando institucional, nomeadamente o papel do Governo, e muito menos alimentar noções espúrias de autonomia e de intocabilidade das lideranças das Forças Armadas.