Parece evidente para uma larga maioria de pessoas, entre as quais me incluo, que o escândalo esta semana conhecido no seio das Forças Armadas, e seus posteriores desenvolvimentos, deixaram bem à vista a descoordenação de meios entre as entidades fiscalizadoras do exército, a deficiente gestão e comando hierarquizado das Forças Armadas e a desarticulação entre Governo central, Ministério da Defesa, Administração Interna e Negócios Estrangeiros por causa das missões da ONU. Além de abalar, sem dó nem piedade, a reputação nacional e internacional de Portugal.
Infelizmente, do trágico caso de Tancos ocorrido há anos, não resultou o que todos esperávamos das entidades que fiscalizam: mais eficiência e, sobretudo, mais responsabilidade. E por falar em responsabilidade – ou falta dela – começa a ser penoso assistir à atuação do Governo nesta matéria.
Depois de desculpar por ausência de informação o primeiro-ministro António Costa, o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Santos Silva, e até aquele que é o Comandante Supremo das Forças Armadas, Marcelo Rebelo de Sousa, o ministro da Defesa João Cravinho nem “mea culpa” fez, limitou-se a dizer que não comunicou a estas entidades, não explicando as razões porque não o fez.
Assim, é a hierarquia e comunicação do Governo a serem atingidas e postas em causa num assunto que se considera de Estado. No caso, falo da operação Miríade, desencadeada numa megaoperação da Polícia Judiciária, que envolveu 100 mandados de busca e resultou em 11 detenções, incluindo militares, um advogado, um agente da PSP e um guarda da GNR, num inquérito dirigido pelo DIAP e pelo Juiz Carlos Alexandre.
A gravidade dos factos é, segundo divulgado na imprensa, da investigação a uma rede criminosa com ligações internacionais que “se dedica a obter proveitos ilícitos através de contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafação e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas”, com vista ao branqueamento de capitais.
Mas se alguns militares portugueses em missões da ONU na República Centro-Africana podem ter sido utilizados como “correios no tráfico de droga, ouro e diamantes”, tendo as autoridades militares conhecimento disso desde dezembro de 2019, porque razão foi preciso a Polícia Judiciária e o Ministério Público intervirem passado este tempo? Para que serve a PJ Militar e as hierarquias da tutela?
Do que se sabe, o juiz de instrução aplicou medidas de suspensão do exercício de profissão a quatro arguidos, portanto na esfera do Estado, mas, politicamente, parece que nada de importante se passou, ou passa, e responsabilidade política é nula e inexistente. Ou seja, não há qualquer baixa política, ou será que haverá? Depende se o Governo vai ou não continuar a defender o indefensável, que até agora estava em segredo de justiça e apesar de a investigação durar há dois anos, ninguém superior sabia.
Perante tais factos – aos quais se juntam agora mais ligações, ou falta delas, relacionadas com outros ministérios – o ministro dos Negócios Estrangeiros, vem dizer que “quanto ao único elemento com relevância do ponto de vista da política externa, nós temos um canal de comunicação direto entre o Ministério da Defesa Nacional e o departamento das Nações Unidas responsável pelas missões de paz. E esse canal foi ativado para informar as Nações Unidas em devido tempo”. Na realidade, o que precisávamos é que o Governo evidenciasse, de forma transparente, que os interesses do país e a sua reputação internacional estão muito acima dos interesses de quem se escuda em dizer que nada sabe.
A questão pode até ser apenas de justiça, investigação, mas passados dois anos dos factos conhecidos, da participação de Portugal em missões de paz em África, é também política. E ética.
O país precisa de saber, de uma vez por todas, preto no branco, que quando está em causa o interesse nacional e a reputação coletiva, tem de haver um Governo de Portugal, e não um passar de culpas entre os seus membros. Exige-se saber todos os passos políticos dados nos últimos anos sobre uma matéria tão gravosa para a imagem de Portugal.