Realizou-se nos dias 9 e 10 de dezembro a chamada “Cimeira da Democracia”, uma promessa eleitoral do Presidente Joe Biden, que reuniu virtualmente mais de 100 presidentes da república, chefes de governo e reis de todas as regiões do globo, para discutir o declínio da democracia no mundo. Por sinal, uma ideia já anteriormente formulada pela Administração Trump, com o nome de “Aliança das Democracias”. Procura-se com esta iniciativa tornar as “democracias mais responsáveis e resilientes” através da construção de uma comunidade de países comprometidos com a afirmação da democracia. Oficialmente, o projeto visa “galvanizar a renovação democrática em todo o mundo,” ameaçada pela ação de grandes potências autoritárias, como a Rússia e a China.
O objetivo do conclave seria alcançado através de uma discussão alargada sobre como melhorar a qualidade da democracia. Esse debate é meritório e seguramente de grande utilidade, sobretudo para a democracia norte-americana a largos passos de se tornar numa plutocracia. Questionamo-nos, no entanto, se este é realmente o verdadeiro fim da Cimeira, ou se não visará criar uma associação de Estados liderada pelos EUA, para ser utilizada na sua cruzada contra a China e a Rússia.
Alguns dos promotores da iniciativa descaíram-se dizendo que a reunião visa “contrabalançar o poder das autocracias chinesa e russa,” deixando a nu o verdadeiro leitmotiv da “Cimeira”, um projeto motivado por considerações geopolíticas dirigido contra a emergência da China, que pouco ou nada tem a ver com o retrocesso global da democracia. Seria difícil outra interpretação.
Trata-se de um plano perigoso que recorre a uma visão maniqueísta do mundo – o bem contra o mal, as democracias contra as autocracias – para disfarçar as motivações geopolíticas, que lhe subjazem. No fundo, o que Biden nos vem propor é “dividir o mundo em dois campos, entre os quais haveria pouca interação, ou ainda menos compreensão”, obrigando todos os países, quisessem ou não, a tomar um partido.
Em vez de propor soluções que conduzissem à diminuição das tensões, Biden aposta na escalada tornando o conflito inevitável, alimentando aqueles que no establishment acreditam ser possível os EUA conduzirem uma guerra convencional contra a China vitoriosa, sem escalar para o patamar nuclear estratégico. Por detrás deste pensamento pérfido escondem-se os defensores de soluções belicosas, a que os acontecimentos ocorridos ao longo deste ano na Ucrânia não são alheios.
É despropositado estabelecer uma relação entre considerações geopolíticas e regimes políticos. A transformação da China numa democracia liberal não a levaria a abdicar das suas preocupações geoestratégicas, e a alterar o seu comportamento na cena internacional. Teria os mesmos ensejos e ambições da China atual. Nunca esqueceria as humilhações a que foi sujeita pelas potências ocidentais ao longo do século XIX.
Os valores da democracia liberal não se sobrepuseram em nenhum sítio ao cálculo estratégico dos Estados. Assim como os regimes políticos, não apagam nem se sobrepõem à história dos povos. É errado ver a política internacional como um confronto entre democracia e autoritarismo. Os Estados cooperam ou competem entre si, conforme os seus interesses coincidem ou não, independentemente do seu regime político… como todos sabemos.