Em pouco mais de cinco dias, as tropas russas dominaram quase totalmente a oposição armada do exército georgiano, que tinha recebido treino e armamento dos Estados Unidos.
Foi em 2008 e a intervenção russa fez-se, primeiro, através dos seus aliados insurgentes das províncias georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul, cuja independência tinha reconhecido pouco tempo antes e, depois, aproveitando uma precipitação da Geórgia, que tentou recuperar território legitimamente seu, diretamente, com as forças russas a subjugar as forças georgianas e a ocupar várias das suas cidades.
Desde essa altura, as duas províncias separatistas continuam sob controlo russo, em particular a Abecásia e a respetiva costa do Mar Negro, com o seu estratégico porto e base Naval de Sukhumi.
De recordar que, pouco tempo antes, a Rússia também contestou a crescente presença da NATO no Mar Negro e, em particular, na Geórgia. A que se somam outros três factos, complementares.
O primeiro, o porto de Sukhumi na Geórgia, Abecásia, sempre foi um porto estratégico e permanentemente disputado pela Rússia até ao século XIX. O segundo, antes do conflito armado da Rússia com a Geórgia, em 2008, a Ucrânia, através do seu presidente pró-russo, Viktor Yushchenko, prolongou o arrendamento da estratégica e histórica base naval de Sebastopol na Crimeia, até 2042, por um valor de 68 milhões de euros. Base essa que o governo russo da altura, naquelas declarações típicas para ocidental, admitiu abandonar. O terceiro facto, a França, nomeadamente através da sua presidência da União Europeia, teve um papel decisivo nas negociações entre a Rússia e a Geórgia, que conduziram ao atual statu quo favorável à Rússia.
Em 2014, após a queda em fevereiro desse ano do Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, também ele pró-russo e com apoio popular da sua região de Donetsk e da bacia do Donets ou Donbass, começaram os atos preparatórios do que viria a ser a rebelião pró-russa na Ucrânia e a consequente declaração unilateral de independência das repúblicas populares de Lugansk e Donetsk, que em conjunto formaram uma região confederada designada por Nova Rússia.
O conflito prosseguiu com dezenas de milhares de baixas militares e civis e apenas em 2019, com o acordo Steinmeier, com o nome do ex-Presidente alemão, na sequência de negociações com a Rússia conduzidas pelo presidente Macron da França e pela Chanceler Merkel da Alemanha, foi possível chegar ao atual statu quo, também aqui amplamente favorável aos interesses russos.
Pela mesma altura, em 2014, após a queda do governo de Yanukovych, as forças armadas russas ocuparam a Crimeia, com o apoio de movimentos separatistas da Crimeia, expulsando as forças ucranianas e constituindo duas regiões federais russas, a da República da Crimeia e a cidade federal de Sebastopol, num movimento que chegou a ser noticiado em jornais ocidentais de referência como um conflito para a defesa das comunidades russas naquela região.
Na atualidade, podemos afirmar que a Leste nada de novo.
O que está a acontecer é o consolidar da estratégia russa de recuperação de territórios e, consequentemente, populações que considera suas e uma herança da Rússia histórica.
Embora o presidente Putin seja um líder nado e criado na União Soviética, rapidamente assumiu a narrativa da Rússia histórica ou Rússia imperial.
Esse trajeto é claro e tem sido assumido de forma, também ela, muito clara. Da recuperação do papel da Igreja ortodoxa na sociedade russa à sua perpetuação no poder, dentro do simulacro de mudança entre os cargos de presidente e de primeiro-ministro, até à imagética e à narrativa anti-ocidental.
Mas é sobretudo a recuperação clara do conceito de Mãe-Rússia (Mat’Rossya) ou pátria-Mãe (Rodina-Mat), uma personificação da Rússia histórica desenvolvida no período soviético, que atualmente encontra acolhimento, que sustenta a política externa da Rússia de Putin – a qual não perdoa a queda da URSS e, sobretudo, na sua visão, os fracos líderes russos que conduziram à implosão da URSS, à perda de controlo dos países da CEI e, em particular, à perda para outras soberanias de territórios e populações da Mãe-Rússia.
Em matéria de política externa, a Rússia tem largas vantagens sobre as diplomacias ocidentais pois não só tem a cultura e o conhecimento histórico diplomático russo (soviético), como é chefiada pelo mais competente e experiente ministro dos Negócios Estrangeiros da atualidade, Serguei Lavrov, no cargo há 18 anos.
Mas a verdadeira vantagem russa no campo diplomático é, antes de mais, Vladimir Putin. No poder desde 1999, os 18 anos como presidente da Federação em dois mandatos intercalados com o cargo de primeiro-ministro, permitem-lhe assumir-se como um líder cujo tempo de permanência no poder lhe confere um estatuto único na esfera internacional por oposição ao que considera os transitórios líderes ocidentais.
Na liderança de Putin, o enorme esforço comunicacional que é feito pela mais poderosa máquina de comunicação pertencente a um Estado, no sentido de mitificar a sua figura e de realçar os seus atributos, é incomparável à escala mundial.
Putin conhece, melhor do que ninguém, as causas passadas das diferentes desgraças russas, mas também conhece como poucos as fraquezas do Ocidente.
Sabe que a sua capacidade militar é inferior à dos norte-americanos, pois as forças armadas russas são inferiores não só em termos tecnológicos como em quase todas as áreas, da capacidade aérea à naval, mas também na capacidade de projeção de forças, na atual experiência de combate e, sobretudo, na capacidade industrial e económica de sustentar um esforço militar mais prolongado. Acresce a essa debilidade o crescimento demográfico russo, ou a falta dele, e a pequenez da economia russa. Não fosse a capacidade nuclear estratégica e tática e essa diferença para os EUA e países da NATO ainda seria mais acentuada.
Claro que não é essa a perceção da maioria das pessoas nos países europeus. A máquina de propaganda russa tem feito por isso de diversas formas, incluindo a maciça desinformação levada a cabo nas redes sociais.
Putin também sabe que a economia russa não tolera grandes pressões e depende, quase totalmente, do consumo dos seus recursos naturais pelo Ocidente. Se a Rússia pode cortar o abastecimento de gás e petróleo aos países do centro da Europa, também sabe que, se o fizer, terá de suportar um frio inverno nas suas finanças.
Neste contexto, esta Rússia prosseguirá os seus objetivos estratégicos intemporais. Conhece as suas limitações e vulnerabilidades, mas também conhece as do Ocidente.
Continuará esta política de parecer mais forte do que é, pois não pode aparentar fraqueza, não tanto devido ao seu rival estratégico do momento, os EUA e a NATO, que conhece bem e sabe que não está no seu ADN atacar diretamente a Rússia, ou mesmo os seus aliados, mas perante aquele que será o adversário estratégico da Rússia no futuro, a China.
Continuará a desenvolver a sua política externa junto dos países limítrofes, apostando em dois eixos, o controlo dos mesmos através de regimes políticos que lhe forem favoráveis, para não dizer subservientes, ou através da subversão dos que se opuserem ou desenvolverem políticas pró-ocidentais. Nesse papel subversivo têm particular relevo as comunidades russófonas que vivem em países limítrofes. E os países que melhor entenderam esse risco foram os países bálticos.
Nesse seu trajeto, continuará certamente a contar com a falta de coesão na União Europeia e com o tradicional posicionamento franco-alemão que, embora por razões distintas, prefere a estabilidade e o não alinhamento claro com a visão anglo-saxónica da estratégia para a NATO, mesmo que isso implique o sacrifício de princípios do direito internacional e da soberania dos países que vão sendo parcialmente ocupados.
Quanto à Ucrânia, um país que sempre lutou pela sua autonomia face à Rússia, cujas fronteiras resultam de uma construção de interesses políticos soviéticos, dividido entre uma população, maioritária, pró-independência e pró-Ocidente a Oeste, mas com uma importante maioria pró-russa a Leste, e uma situação económica e um regime político frágeis, será muito difícil, senão impossível, recuperar o que já perdeu, bem como evitar ainda a consolidação dessa ocupação com a posterior ocupação de alguns territórios, nomeadamente os que ligam o Donbass e a Crimeia (partes das regiões ucranianas da Zaporizhia e de Kherson).