Nunca, como agora, foi tão compreensível a maldição do provérbio chinês, “que possas viver em tempos interessantes”. Ansiávamos pelos loucos anos 20 do século XX, após o fim da pandemia, mas fomos confrontados, de modo alucinante, com o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, uma das mais graves agressões militares europeias desde a Segunda Guerra Mundial.

De certo modo, parecia que tudo estava planeado desde há muito: a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, na sequência da revolução de Maidan, a forte máquina de propaganda russa, sempre a despejar milhões em todo o mundo e a influenciar eleições, partidos e políticos de ideologia fascista, empresas e lobistas. É uma nova forma de imperialismo russo que ameaça potências globais e vizinhos, assassina ou prende opositores, expondo um regime autoritário que há muito deixou de servir o comunismo para dar lugar a uma cleptocracia sinistra.

Há dois anos, chegou-me às mãos o livro de Svetlana Alexievich, autora bielorrussa e vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2015, “O Fim do Homem Soviético”, uma coletânea de testemunhos que descreve o colapso da União Soviética, em que os comunistas da velha ordem se viram, de repente, a braços com um novo mundo, e tiveram de repensar os seus conceitos de ideologia, vida e morte.

A um dado momento, surge este testemunho: “Os russos são o tipo de pessoas que se deixam levar pelo momento. Por algum tempo, foram levados pelo comunismo, trabalhando furiosamente numa forma de o concretizar, com um zelo religioso. Até que, por fim, cansaram-se e cederam à desilusão. Decidiram rejeitar o velho mundo, sacudindo as suas cinzas dos pés. É uma característica muito russa começar de novo, por entre as ruínas fumegantes.”

Um espetro paira sobre a Rússia de novo, mas desta vez não é o do comunismo. Poderá ser o espetro de uma revolução pela democracia? Há mais de uma década que milhares de russos se reúnem nas praças principais em manifestações contra o atual regime. Com a crescente saída de inúmeras empresas vitais para a economia russa, e um banco central russo bastante limitado, e perante uma população empobrecida que irá sofrer as consequências de uma guerra em que não teve poder de decisão, irá a elite política russa manter Putin no poder?

Em poucos dias de guerra, a Rússia já matou centenas de ucranianos, destruiu casas e atingiu cidades, com armamento cada vez mais nocivo. Mais de meio milhão de ucranianos já escapou da violência, criando uma das maiores vagas migratórias europeias. Se escrevi mais sobre o povo russo nesta crónica, não é porque admire menos o povo ucraniano e a sua resistência nestes tempos difíceis. É porque cabe aos russos a responsabilidade de encontrar o seu lugar certo na História e recuar face àquilo que promete ser um dos maiores desastres militares e humanitários deste século. O seu isolamento crescente, imposto por um saudoso do império, conseguiu revigorar toda uma nova ordem mundial contra si.

Como escreveu Alexievich num dos seus testemunhos: “E para aqueles que não acreditam em Deus, e se interessam por matérias como o socialismo e anarquismo, tentando recriar a Humanidade de acordo com um novo modelo, não veem que todos eles irão acabar nas mãos do Diabo?”.