Há alguns dias o galvanizador ministro doutor João Gomes Cravinho deu uma sonolenta entrevista à TVI em que sossegou os portugueses. Disse ele: “Creio que Portugal não sofrerá retaliações da Rússia”. Ufff! Todos podemos dormir a sesta. O doutor Cravinho acredita que apesar de pertencermos à NATO, à União Europeia e de enviarmos tropas para a Roménia, o máximo que nos pode acontecer é que o preço da energia e dos cereais aumente e, quanto muito, num momento de fúria, o doutor Vladimir Putin suspenda a venda de Matrioskas, ou mesmo de vodka, a Portugal.

O doutor Cravinho acredita que as Forças Armadas são um grupo de soldadinhos de chumbo, próprios para paradas onde ele pode fazer continência e um ou outro discurso monocórdico, e que só existem para poder existir um ministro da Defesa. Para ele as Forças Armadas são uma maçada, que só devem existir para que ele as possa tornar um departamento do funcionalismo público. Mas, como pensava o triunvirato Sith, o lado negro da Força em “A Guerra das Estrelas”, “a paz é uma mentira”.

 

 

O doutor Cravinho comunga de uma doutrina que atravessou grande parte do século XX, segundo a qual as Forças Armadas eram a Brigada do Reumático do Governo, que pode e deve mexer na sua hierarquia ao sabor dos seus interesses políticos, e que se Portugal estiver sossegadinho não lhe cai chuva ou balas em cima da cabeça. A notável doutrina militar do doutor Cravinho (e de parte do PS e do PSD) considera as Forças Armadas um mal necessário. Por isso tem-se entretido ao longo dos anos a tentar a sua partidarização e a sua subjugação total aos humores do Governo.

A forma como o doutor Cravinho correu com o almirante Mendes Calado de Chefe de Estado-Maior da Armada para ali colocar, ao arrepio do mínimo bom senso, o almirante Gouveia e Melo, mostrou o que o Governo acha das Forças Armadas. Só falta nomear uns “boys” para chefes militares e o país ficaria salvo e mais uns pajens teriam emprego garantido. A Lei Orgânica de Bases das Forças Armadas foi o culminar desta estratégia de partidarização das Forças Armadas, que já serviu para despachar uns oficiais que ousaram discordar dela. Só não correu bem a nomeação do vice-chefe de Estado Maior da Armada, num braço de ferro com o doutor Marcelo Rebelo de Sousa, que irá continuar por certo.

Há muito que a única visão de estratégia de Defesa em Portugal por parte dos principais partidos políticos é a sua partidarização. E uns telefonemas da sede da NATO para sabermos o que fazemos. Quanto ao resto, num país com uma vasta área marítima para garantir a soberania, não há decisões. O ministro, num contexto como o actual, onde se volta a perceber a necessidade de Forças Armadas bem equipadas, com um número suficiente de operacionais, só está preocupado em criar um clube de amigos para dirigir a “tropa”.

Um dos poucos políticos clarividentes que passou por Portugal nos últimos 200 anos, João Andrade Corvo, escreveu em 1870 um dos mais importantes livros sobre a estratégia do país, “Perigos, Portugal na Europa e no Mundo”. Dizia ele: “Às nações pequenas ensinam-lhes esses factos que devem, antes de tudo, contar com a sua própria energia e estar prontas para o combate; disso depende a sua existência. Nas relações recíprocas dos povos não há nada, infelizmente, que possa tranquilizar as nações pequenas, Tudo é contingente. A força e a astúcia dominam. Cala-se a justiça, emudece a moral e o direito diante da ambição e da ousadia. Inventam-se os princípios para servirem em cada caso, e abandonam-se depois de se conseguirem os fins.

O estado de guerra, em toda a plenitude brutal da sua selvajaria, é o estado actual das nações, que se jactam de civilizadas”. E mais adiante: “Cada nação tem os seus aliados naturais. Hoje, mais do que nunca, é preciso que se firmem as alianças e estreite a amizade entre as nações que têm princípios, tradições ou interesses em comum: por este modo se conseguirá não a guerra mas a paz. Aos grandes impérios é preciso opor as grandes alianças”.

Regressámos ao mundo das incertezas. Já ninguém sabe o que será o dia de amanhã, entre a Covid e a guerra. O senhor Putin não é louco. Tal como o senhor Estaline não estava louco. Ambos compartilham um carácter frio, calculista e maquiavélico, que acha que o fim justifica todos os meios. Antes da Ucrânia, o senhor Putin já usara a mesma estratégia na Chechénia e na Geórgia. E na Síria. Só entende a linguagem da força. Face a isso Portugal, mesmo sendo um peão num jogo mais largo, não está imune ao senhor Putin, ao contrário do que parece acreditar o doutor Cravinho.

O problema maior é a ausência de uma visão estratégica para a Defesa em Portugal. Num mundo cada vez mais perigoso é assustador a forma como o doutor Cravinho e os que representa estão mais preocupados com o poder sobre as Forças Armadas do que o poder destas em função de ameaças externas. Por isso diz: quem governa sou eu. Luís XIV, que tinha uma visão mais megalómana de exercer o poder, não se conteve e confidenciou que o Estado era ele. Criou-se assim o absolutismo. Em Portugal isso é, por agora, inviável. Nas Forças Armadas o doutor Cravinho criou uma outra figura: o oficialismo.

É o corolário da partidarização do Estado onde se criou o milagre da multiplicação. Durante anos os “boys” e “girls” reproduziram-se como Gremlins em tudo onde tocasse a longa mão do Estado. Cada partido que ocupava o poder executivo cumpria a sua missão quase divina: encarava o Estado como condomínio privado. Essa maré negra causou uma catástrofe ecológica. Olha-se à volta e vemos como vai ser difícil reformar um país que se partidarizou em excesso. Criou-se a cultura da partidarite em Portugal, um valor muito mais importante do que o mérito.

Numa Europa em guerra, as manobras militares do doutor Cravinho são um tiro no pé da operacionalidade do país em face de desafios que se adivinham maiores. Porque a invasão do senhor Putin traz questões económicas, culturais e sociais que não se esgotam na Ucrânia. Causam uma pobreza ainda maior na África, na Ásia e na América Latina. E, claro, na Europa. Mas isso, claro, é demais para o doutor Cravinho. A questão é que deverá sair do Governo. Mas o pior mal já está feito.

 

A vida subterrânea

Neil Gaiman é um mestre da fantasia. Não só no universo da Banda Desenhada (onde foi o criador de, por exemplo, “Sandman”), mas também de ficção literária onde alguns se lembrarão do memorável “American Gods”, um grande livro sobre a América e sobre as coisas que pessoas de todo o mundo tinham trazido para esta terra que buscava sempre a última fronteira.

Esse era um mundo que tinha também a ver com os deuses que esses emigrantes trouxeram com eles e que, depois, abandonaram. Gaiman conta histórias que prendem a atenção e cria novos universos onde podemos mover a nossa imaginação. Este “Lugar Nenhum/Neverwhere”, publicado originalmente em 1997, é a sua primeira novela e foi um livro que nivelou aquilo a que poderíamos chamar a novela urbana fantástica. Ao longo dos anos foram criadas outras versões do original. E esta é uma delas.

“Lugar Nenhum” é desde logo a história de Richard Mayhew, um analista financeiro de bom coração, mas algo perdido na moderna cidade de Londres (ou “Londres de Cima”), e de Door, membro da aristocracia de “Londres de Baixo”, que é um reino fantástico de pessoas, históricas e lugares abaixo da cidade ligados pelo metropolitano de Londres. Richard encontra Door ferida numa rua da cidade e logo é atraído por sua tentativa desesperada de fugir dos assassinos que mataram o resto da sua família, ao mesmo tempo em que procura entender o motivo pelo qual ela foi assassinada.

Ao longo do caminho, somos apresentados a um número satisfatório de delícias. Estes incluem os assassinos Misters Croup e Vandemar, um par dickensiano saído dum universo de pesadelo; o Mercado Flutuante, onde todos os cidadãos rivais de Londres de Baixo se reúnem sob uma trégua geral para tramar, negociar e se divertir; um grande grupo de jogadores de apoio; e o anjo Islington que ainda está de luto devido ao seu fracasso em salvar o povo da Atlântida da destruição.

A ficção de Gaiman não é infinita, no entanto. O seu enredo tem reviravoltas suficientes para manter a história num movimento agradável. O seu anjo Islington e a namorada rica de Richard são seres convictos. A jovem Door é como uma criança abandonada, mas resoluta. O Marquês de Carabras é amoral, mas escrupuloso no pagamento de suas dívidas. Os Black Friars são gentis, mas um pouco sinistros. Mais particularmente, e sem sucesso, Richard Mayhew é infeliz e heroico.

Mayhew é principalmente paralisado pelo medo e protegido pelos outros personagens, excepto em alguns momentos em que ele enfrenta um desafio que derrotou dezenas de homens e mulheres de Londres de Baixo ao longo dos séculos. Um desafio é a terrível “provação” e o outro é a grande “Besta de Londres” que espreita num labirinto. No fundo Mayhew, neste mundo de sombras e escuridão, sabe que se voltar a Londres  de Cima será para salvar o estranho reino de Londres de Baixo.

Ele quer voltar a ter a sua vida normal, dentro de um certo grau de segurança, mas também percebe, no fim, que ele próprio mudou e nada mais vai ser como antigamente. Há aqui uma viagem mítica, onde há muito de Charles Dickens a cruzar-se com Matrix. E é nesse mundo fabuloso mas assustador que Neil Gaiman se move muito bem.

Neil Gaiman, “Lugar Nenhum/Neverwhere”, Saída de Emergência, 334 páginas, 2022

 

Guitarras fortes

Num momento curioso da história da música, assiste-se na Grã-Bretanha a um genuíno fascínio pelo “country” americano. Muitos jovens desejam ir a Nashville e comprar um chapéu de “cowboy” e viver esse mundo sonoro onde se canta o amor e a desilusão, os vastos horizontes da última fronteira, a solidão e o desespero. Para muitos poderá ser estranho que no mundo da electrónica, alguns tentem regressar às linhas sonoras mais humanas e mais básicas: uma guitarra e a voz. Talvez estejam agora fascinados com Dolly Parton ou com parte do que Taylor Swift tem feito, quando não fica afectada por excessos de R’n’B. Ou pelo passado, dos Flying Burrito Brothers a CSN&Y ou mesmo Joni Mitchell.

Os Big Thief situam-se numa fronteira muito interessante entre o “indie rock” e o “country-rock” que Gram Parsons outrora transformou numa onda vinda das montanhas onde todos desejavam inspirar-se. Os Big Thief são um grupo de guitarras. O seu novo disco, “Dragon New Warm Mountain I Believe in You” (CD 4AD 2022), volta a centrar-se em torno da voz e guitarra de Adrianne Lenker e das palavras, observadoras e sensíveis, que guiam os fãs através do infinito, enquanto comunga connosco histórias de amor e perda.

Há o trabalho excelente do guitarrista Buck Meek, outra unidade fundamental do processo criativo, apesar do corte emocional entre ele e Lenker na vida real. Há sempre uma referência muito forte ao mundo da fé, que tanta importância teve na adolescência de Lenker, como é visível num dos temas mais empolgantes do disco, “Sparrow”, onde Adão fala de Eva e do “veneno” que ela pode ter dentro dela. Não é talvez uma acusação mas sim um sinal de preocupação.

Esta é uma música sobre ausência. Nestas canções, como tudo na música dos Big Thief, há uma busca das raízes: o regresso à terra, aos mitos, à essência mais humana das coisas. Há no disco muito louvor a Neil Young (“Red Moon” faz-nos lembrar o universo sonoro deste). Em “Magic” o grupo busca inúmeras linhas criativas, que demonstram que, ao quinto álbum, os Big Thief ainda têm muito para descobrir e oferecer.

 

Em busca das mudanças

É um verdadeiro jogo do gato e do rato. “Killing Eve” (HBO), de que agora estreou a 4ª temporada (a final, segundo se diz), é mais do que uma série que retrata os destinos cruzados de uma agente de segurança do MI6 e de uma assassina contratada, presas num jogo violento de obsessões. Por detrás há um humor negro, cáutico e mesmo amoral. A química entre as duas actrizes principais, Sandra Oh (Eve) e Jodie Comer (Villanelle) é fundamental.

Agora Eve trabalha para uma empresa de segurança privada e Villanelle deixou, segundo diz, de ter gosto pelo sangue e quer encontrar alegria na sua vida. Mas elas mudaram mesmo? Eve diz: “Se tivesses mudado, não vinhas até aqui”. Ao que responde Villanelle: “Se tu tivesses mesmo mudado, não me terias deixado”. Na realidade elas mudaram ao longo da série, embora durante estes dois anos de ausência da série parece pouco sólido o desinteresse de Eve em Villanelle e a busca desta (até junto de Cristo) para ser uma pessoa melhor aos olhos da ex-agente. Mas se quer isto, o seu desejo por matar continua presente.

Nesta temporada Eve trabalha com Yusuf, um colega com que tem uma relação mais física do que emocional. Villanelle quer provar que pode desistir de matar para sempre, mas a sua personalidade é mais forte do que as máscaras que vai deixando cair. Tudo corre mal. Para alargar a tensão a série socorre-se de Carolyn, que agora foi colocada como “adida cultural” em Maiorca, mas sente-se entediada. Assim busca parceiros alternativos para voltar ao jogo, onde , claro, surge o notável Konstantin.

Hélène torna-se alguém importante para Eve, enquanto aquela treina Pam, uma agente funerária durante o dia e aprendiz de assassina à noite. E os Doze continuam a ser o misterioso fio condutor que une todas as histórias. “Killing Eve” é uma série fascinante, no seu difícil equilíbrio entre a comédia negra e a série policial. Mas é isso, e um conjunto de grandes actores, que tornam suportável o mal e o sangue que escorre nos episódios, muitas vezes sem uma razão plausível.

 

As vozes da rádio

Houve um tempo em que a rádio não era apenas “playlists” de temas que são sempre os mesmos e de espaços onde tem de haver sempre piadas para distribuir. Em 1947 havia as “artistas da rádio” da Emissora Nacional, de que as revistas revelavam os nomes. Uma face escondida para lá da voz. A rádio era um mundo de mistérios e de maravilhas.