A invasão da Ucrânia pela Rússia passou a ser presença assídua nos noticiários, no nosso quotidiano e nas nossas conversas e preocupações.  Ninguém conseguia imaginar este cenário bélico, esta barbárie. A realidade, uma vez mais, esta a ultrapassar a ficção. Por isso, práticas como o uso de bombas de fragmentação e ataque a zonas habitacionais, hospitais e orfanatos, tornaram “Crimes de Guerra” as palavras de ordem nos dias de hoje.

O que verdadeiramente consubstancia um crime de guerra?

Foram as Convenções de Genebra, assinadas pela primeira vez em 1949, e os subsequentes tratados internacionais, que determinaram os limites da guerra e conduziram os conflitos armados, protegendo não apenas quem não está no combate (como civis e profissionais de saúde) como também quem deixou de combater (isto é, militares feridos e prisioneiros de guerra).

São estas convenções que, concomitantemente, definem as regras da guerra e traçam os limites daquilo que poderá ser considerado crime. Percebe-se, portanto, que os crimes de guerra compreendem uma categoria ampla, que envolvem diversas condutas específicas.

A par da Convenção de Genebra, também o  Estatuto de Roma traça “linhas vermelhas”. No seu artigo oitavo encontramos vários exemplos daquilo que poderá vir a ser classificado como crime de guerra, nomeadamente, “atacar intencionalmente a população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades; atacar intencionalmente edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares; utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou similares, ou qualquer líquido, material ou dispositivo análogo”, entre outras condutas igualmente grotescas.

Nas mais recentes investidas russas, estão a ser usados meios (como bombas de fragmentação, cuja utilização se encontra proibida pelas nações unidas desde 2008) que integram o catálogo de condutas que consubstanciam verdadeiros crimes de guerra. Expressão clara disso mesmo é a mais recente investida russa quando se fez uso de uma bomba de vácuo, cujo uso é proibido pela Convenção de Genebra, configurando tal violação, ela mesma, um ato, que só por si, é passível de ser classificado como ato de guerra.

A provarem-se estes crimes, ónus que sempre terá que ser verificado, não só a Rússia como todos os indivíduos que tiveram um papel decisivo na autorização destes crimes de guerra poderão ser condenados, ocupando o primeiro lugar desta vasta lista, o atual presidente da Rússia, Vladimir Putin.

Serão puníveis condutas de incitamento à guerra?

A Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho, que vem adaptar a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário, estabelece no seu artigo 17.º a criminalização de condutas de incitamento à guerra, prevendo que “Quem, pública e repetidamente, incitar ao ódio contra um povo com intenção de desencadear uma guerra é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos”.

Em bom rigor, estamos a falar de criminalização de condutas que encorajem os habitantes de determinado país ou até a força militar, à prática de atos violentos, com o objetivo de desencadear uma guerra e colocar em causa a convivência pacifica entre os cidadãos desse ordenamento (tal poderá ser alcançado através, por exemplo, da promoção de discurso de ódio contra um determinado povo, acompanhado de distribuição de armas para alcançar o efeito pretendido).

Qual o regime aplicável aos crimes de guerra?

As Convenções de Genebra (I, II, III e IV) compõem o núcleo do Direito Internacional Humanitário, o ramo do Direito Internacional que regula a condução dos conflitos armados, com o objetivo de limitação dos seus efeitos, sendo por isso o principal instrumento a ser aplicável aos crimes de guerra.

A estas sempre acrescem os protocolos adicionais (Protocolo I, II e III), os quais, fortalecem a proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais e não internacionais, balizando os trâmites em que as guerras operam.

Não poderemos olvidar a relevância do Estatuto De Roma Do Tribunal Penal Internacional, diploma que cria o Tribunal Penal Internacional e delimita, não só a sua competência, como também aquilo que se considera, à luz do direito internacional, um crime de guerra.

Todos os atos de violação pelas nações que ratificaram as Convenções de Genebra podem conduzir a um processo diante do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) ou diante do Tribunal Penal Internacional (TPI).

O Tribunal Internacional de Justiça não deverá ser confundido com o Tribunal Penal Internacional, uma vez que este terá competência para julgar indivíduos e não Estados, enquanto aquele tem como principal objetivo resolver conflitos jurídicos que lhe sejam submetidos por Estados e emitir pareceres sobre questões jurídicas apresentadas ordinariamente pela Assembleia Geral das Nações Unidas ou pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Onde serão julgados tais crimes?

Criado em 1998, pelo Estatuto de Roma, será o Tribunal Penal Internacional (doravante TPI) que terá a competência a respeito dos crimes de guerra, incluindo-se aqui a maior parte das violações graves do direito internacional humanitário mencionadas nas Convenções de Genebra e nos seus protocolos adicionais, cometidas tanto em conflitos armados internacionais como não internacionais, revelando-se esta a única instância capaz de avaliar e condenar crimes de guerra.

Sempre se ressalve que, a responsabilização de indivíduos e Estados, embora possam estar coadunadas ao mesmo facto, não são dependentes uma da outra. Exemplo disto mesmo, é quando em 1979, no Irão, indivíduos singulares invadiram a embaixada dos EUA. Embora esta conduta não tenha sido conduzida pelo Estado iraniano, este ao adotar como sua, permitiu a sua responsabilização.

Quando poderá o TPI atuar? 

Poderá o TPI exercer a sua competência quando um Estado é parte integrante do Estatuto, aceitando assim a competência do TPI sobre os crimes supra aflorados. Ainda de acordo com o artigo 25.º do Estatuto, o Tribunal exercerá a sua competência sobre indivíduos, e não sobre Estados.

No exemplo supra exposto, não poderemos olvidar que nem a Rússia nem a Ucrânia ratificaram o Estatuto de Roma, tratado adotado em 1998 e que deu origem ao Tribunal Penal Internacional.

Ora, à primeira vista tal significaria que tais estados não ficariam sujeitas ao cumprimento das suas disposições. Contudo, sempre se note que apesar de ambos os países não se encontrarem abrangidos pelo supramencionado Estatuto, tal não exime a possibilidade de existência de sanções nem impede o TPI de proceder com a investigação, isto porque existem sempre limites mínimos do ponto de vista humanitários que devem ser reprovados e condenados.

Embora se considere que seja difícil (e moroso) levar um Estado que não ratificou tal estatuto a julgamento no TPI, a verdade é que a questão, atendendo o circunstancialismo que assume, pode revestir-se de uma especial maleabilidade, permitindo assim que os Estados que efetivamente fazem parte do Estatuto de Roma possam levar a Rússia a responder perante o TPI.