Gostaria de partilhar convosco três episódios recentes para ilustrar os meus receios de que se esteja a transformar a saúde numa mercadoria e num negócio.
Primeiro: uma dor de dentes e uma visita ao médico dentista. Uma mera inflamação para a qual o dentista receita Ibuprofeno. Na farmácia, o funcionário foi buscar o medicamento genérico. Quando o cliente vai pagar, o empregado repara que beneficia de um subsistema que paga os medicamentos na parte que excede a comparticipação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). De imediato lhe tenta substituir o genérico por outro de marca que custa quatro vezes mais. O cliente reclama. O funcionário diz-lhe que nada irá sentir no bolso, dado que o seu subsistema fará a comparticipação na íntegra. O cliente resiste à substituição, uma vez que os genéricos têm a mesma eficácia que os medicamentos de marca, todos são aprovados pelo Infarmed e contêm os mesmos princípios activos. Simples e linear. Naturalmente, uma margem bruta de 20 pontos percentuais sobre um preço de venda maior produz mais proveitos para quem vende a retalho o medicamento. O cliente a querer preservar a sustentabilidade do seu subsistema de saúde e o vendedor a tentar vender pelo preço mais alto. Interesses contraditórios, provavelmente.
Segundo episódio: uma urgência pediátrica num moderno e grande hospital privado de Lisboa, num fim-de-semana, às 19 horas. Primeira dificuldade: o médico não se encontrava presente. Estava de chamada. Em gíria, tal queria dizer que haveria um sobrecusto, para o cliente, pelo simples facto de ser necessário chamar o médico.
Terceiro caso: um ortopedista conversa com o seu paciente sobre a necessidade de fazer uma cirurgia. Nesse hospital, a cirurgia custaria ao cliente e ao seu subsistema mais de cinco mil euros. Num outro hospital privado, com menos glamour, a cirurgia custaria menos de metade. A mesma equipa médica e os mesmos honorários médicos. A diferença? O custo de piso de sala, os medicamentos em meio hospitalar, onde a administração de um simples analgésico pode custar mais que uma caixa inteira adquirida numa farmácia, e o preço de alojamento. Um hospital cobrando valores razoáveis. O outro cobrando mais que uma estadia no famoso Burj Al Arab.
Resumindo: um caso em que se tenta vender algo que custa quatro vezes mais; outro em que se pretende cobrar por serviços inexistentes; um terceiro em que se procura cobrar muito mais do que a decência deveria permitir.
Tudo isto ocorre numa altura em que estão em curso poderosos ataques, de interesses por certo bem instalados, contra o SNS.
O SNS que nas últimas décadas garantiu o prolongamento da esperança de vida dos portugueses, ou níveis de mortalidade infantil dos mais baixos do mundo, tem, seguramente, muitos problemas. A permeabilidade às ideologias e a ausência de ferramentas de gestão de carreiras e de autonomia de gestão, a par de um crónico subfinanciamento, são alguns deles. Mas um SNS forte e bem gerido é condição essencial para regular o mercado e disciplinar aqueles para quem a saúde é apenas um negócio.
Compete aos utilizadores, aos doentes, que recorrem preferencialmente ao sector privado, fazer uso criterioso dos recursos postos à sua disposição, usar medicamentos genéricos, reclamar em caso de facturação de serviços não prestados, ou procurar alternativas mais equilibradas na relação entre custo e qualidade. Estas são condições essenciais para se procurar evitar que a saúde seja um negócio obsceno, que se aproveita da desgraça e do desconhecimento dos seus clientes. Um Estado que regula e pune o lançamento de pontas de cigarros para o chão, infelizmente anda tão ausente na regulação das matérias de saúde.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.