É difícil escrever crónicas por estes dias sem ser-se especialista em alguma coisa; lemos os matemáticos e cientistas com os seus gráficos de curvas, médicos e enfermeiros a discorrem sobre epidemiologia, economistas que nos avisam sobre o impacto funesto que a paragem da grande máquina laboral irá ter num futuro próximo, juristas a tentarem esclarecer sobre a nova legislação que é aprovada todos os dias para fazer frente a esta crise social e política sem precedentes. E, claro, não poderiam faltar os politólogos e tudólogos que se revelam nestas alturas e que, aparentemente, sabem formar uma opinião sobre todos os assuntos.
Mas, esquecendo um pouco toda a componente científica, técnica e jurídica desta pandemia, o que se tem escrito sobre o nosso estado de espírito? O que se tem escrito sobre as aspirações e projetos que a maioria de nós tinha e que se estilhaçaram porque alguém do outro lado do mundo comeu espécies de animais selvagens em mercados sem qualquer controlo sanitário, colocando em perigo a saúde pública? O que pode ser dito sobre o retrocesso que muitos de nós iremos enfrentar no regresso à normalidade?
Perdemos segurança laboral, estabilidade financeira e tudo que não fosse essencial foi cancelado. A vida ficou em suspenso. Aliás, a vida cultural foi uma das primeiras vítimas trágicas da Covid-19 e será, certamente, um dos setores mais afetados num futuro próximo.
O espaço da casa, maioritariamente considerado de lazer e/ou família, tornou-se uma improvável sala de pânico em que se aguarda, dia após dia, por orientações do Governo, entidade patronal, organismos de educação e saúde, tentando gerir um difícil equilíbrio num espaço de confinamento. Os dias sucedem-se e tornamo-nos cada vez mais ansiosos e dados à agorafobia.
Sou recordada constantemente do privilégio de poder enfrentar esta pandemia em condições relativamente incólumes. A minha situação financeira está a sofrer com esta paragem, e quanto mais prolongada pior será, mas tenho uma casa, saúde e vivo num país com forças políticas que se têm mostrado à altura do desafio e compreendem os perigos atuais. Só posso imaginar a aflição que seria viver num país sem Serviço Nacional de Saúde ou cuja liderança fosse absolutamente irresponsável.
Ainda assim, faria um mau serviço a mim própria se não admitisse que começo a acusar sinais de exaustão de viver num estado de permanente crise desde há mais de uma década. Erguemo-nos as vezes que forem necessárias apenas para sermos derrubados no passo seguinte, qual Sísifo e a sua pedra.
Algumas interrogações pairam na cabeça de todos. Continuaremos a levar as mesmas vidas após esta enorme crise? Continuaremos a aceitar as regras dos mercados que ditam o nosso empobrecimento e endividamento? A nossa saúde mental irá simplesmente adaptar-se ou encontrar novas artimanhas para escapar à sombria realidade? O que acontecerá àqueles que querem ser otimistas mas não se deixam imbuir da coragem que existe para testar soluções nunca antes testadas?
Temos ainda algumas semanas de isolamento social pela frente. Tempo suficiente para refletir sobre que tipo de país e estilo de vida queremos no pós pandemia.