Tem sido crescente a tensão e o tom das críticas de alguns países do mundo acidental, sobretudo dos Estados Unidos, sobre a forma como a Organização Mundial de Saúde geriu o processo de gestão de informação e aconselhamento à comunidade internacional durante as primeiras semanas de infeção da covid-19, quando o epicentro ainda estava localizado na China, em Wuhan.
As críticas têm sido ascendentes, e ganharam maior projeção após o presidente dos Estados Unidos ter dado a entender que poderia suspender temporariamente o financiamento norte-americano à organização máxima mundial no campo sanitário.
Valerá a pena referir que, em cima das alegadas suspeições relacionadas com a negligência da autoridade mundial, estará um crescente desconforto dos Estados Unidos face à China, percecionada como responsável moral por encobrimento com dolo do novel coronavírus, tendo beneficiado da complacência da Organização Mundial de Saúde (OMS) para esse efeito.
Portanto, a recente escalada de críticas da administração americana para com a OMS pode, na realidade, ser o ponto de partida para o que será o novo relacionamento entre Estados Unidos e China na sequência desta pandemia, assim como para um eventual novo balanceamento geopolítico global.
As fragilidades técnicas e políticas da administração da OMS
Os aspetos técnicos que geraram polémica face à atuação da Organização Mundial de Saúde estão essencialmente relacionados com dois factos que se prendem com a sua resposta e aconselhamento.
Num primeiro plano, a restrição de viagens entre a China e o resto do mundo, quando, no final de janeiro (e quase um mês após a oficialização do surto por parte das autoridades chinesas), considerou publicamente que não seria relevante restringir voos internacionais para conter o vírus, numa conferência de imprensa sui generis, onde o delegado da China nas Nações Unidas, Li Song, interveio e proferiu a sua indignação perante o facto de alguns países estarem a negar a entrada a cidadãos chineses, titulares de passaporte da região de Hubei.
A outra recomendação de caráter técnico proferida pela OMS está relacionada com a utilização de máscaras de proteção. A autoridade inicialmente advogou a importância da utilização das mesmas, já depois do epicentro da pandemia ter passado para a Europa, para no princípio de abril começar a alterar a sua orientação e recomendação – em colisão com importantes autoridades sanitárias de países desenvolvidos, como a norte-americana Center for Desease Control and Protection (CDC).
Contudo, a maior fragilidade da OMS relativamente à gestão da propagação do vírus estará associada a uma eventual complacência para com as autoridades sanitárias chinesas aquando dos primeiros sinais, ao não efectuar diligências durante o mês de dezembro no sentido de proceder a uma verificação dos factos independente – sobretudo no que diz respeito à capacidade de transmissão entre humanos – numa altura crítica, como era a preparação do Ano Novo chinês, período em que milhões de pessoas circulam no país.
E isto já numa fase em que os médicos chineses denunciavam, publicamente, que a severidade do vírus era muito diferente de uma gripe tradicional, e que ao contrário do que referiam as autoridades em Wuhan, este seria transmissível entre humanos e não apenas entre os humanos que tinham estado em contacto direto com os animais no mercado local.
A porta aberta a teorias de bastidores
Esta proximidade entre a atuação da OMS e a estrutura local chinesa, em conjunto com várias declarações por parte de outros dirigentes daquela organização, relativamente à resposta chinesa ao surto (seja por complacência para com a credibilidade de estatísticas do surto, seja por confiar demasiado na autoridade local para levar a cabo recomendações que pudessem evitar o contágio mundial), abriu a porta a uma série de teorias de bastidores que estão a ganhar tração, à medida que as eleições presidências norte-americanas se aproximam e os desastrosos impactes económicos associados começam a fazer-se sentir nas economias ocidentais.
Numa altura em que as relações entre os Estados Unidos e a China estão claramente a esfriar, e que podem ir para além da questão do desequilíbrio da balança comercial, a OMS e o seu presidente, Tedros Ghebreyesus, estão na linha de fogo. Em boa parte, existem de facto fragilidades e responsabilidades da autoridade na gestão do processo covid-19. Assim como uma aparentemente escassa agilidade para agir de forma independente, no sentido de não depender excessivamente das equipas locais para proceder a uma diligência efetiva dos impactes possíveis.
Contudo, a pressão crescente sobre a OMS deverá nesta altura estar mais ligada a um crescente esfriar diplomático entre a China e os Estados Unidos, cujos contornos ainda não são totalmente claros.
O que ficará para além da narrativa e após as eleições norte-americanas?
A pressão dos Estados Unidos sobre a China tenderá a aumentar à medida que o verão se aproxima e a severidade recessiva sobre o emprego se mantém, podendo levar Donald Trump e adotar uma narrativa política que defenda a retirada massiva da produção das empresas norte-americanas, sobretudo de setores sensíveis como a produção de medicamentos e laboratórios de investigação médica.
Será cedo para determinar se estamos perante um incontornável virar de página nas relações entre as duas potências mundiais, até porque não será fácil para os Estados Unidos quebrar unilateralmente as amarras comerciais. Só depois das eleições de novembro poderemos perceber se o caminho de afastamento entre a América e a China será definitivo, ou, caso seja retomado, terá elevado peso no que diz respeito à ratificação do acordo comercial.
O xadrez geopolítico mundial, contudo, indicia maior clivagem e menor colaboração entre os dois colossos económicos. Resta saber o que significará para os restantes, sobretudo para uma Europa que discute internamente novas regras de compromisso, ignorando publicamente o que a clivagem de potências pode implicar para o projeto da União Europeia. E a verificar-se esta clivagem há uma decisão a tomar: mais Nato ou Rota da Seda?