As implicações jurídico-políticas do estado de emergência têm merecido alguma atenção dos constitucionalistas. Alguns, como é o caso de Jorge Reis Novais, criticam, entre outros aspectos, as extraordinárias e praticamente ilimitadas capacidades de intervenção do Governo na gestão da crise que lhe são atribuídas pelos decretos presidenciais aprovados pela Assembleia da República.
Acentuando este último ponto e alertando para a ameaça da redução do controle das acções do Governo estão Teresa Violante e Rui Lanceiro em artigo no blogue “Verfassungsblog on matters constitutional”, de leitura obrigatória.
A questão pertinente é a de saber se perante a enorme amplitude de poderes conferida pelos Decretos Presidenciais ao Governo – e vamos admitir que tal amplitude se justifica em vista da complexidade e urgência de combate à epidemia – está o exercício concreto desses poderes efectiva e substantivamente controlado pelo Parlamento, como a Constituição o obriga (art.º 162 al. b)).
Não parece que esteja. A Assembleia da República, por proposta do seu Presidente, aprovou uma deliberação em que o plenário apenas reunirá uma vez por semana, excepto se as circunstâncias o exigirem, mas tal reunião será concretizada com um quinto dos deputados (quórum de funcionamento) e as comissões devem reunir apenas se necessário, mas só “a Mesa e Coordenadores”.
Na realidade, esta solução, aparentemente ditada por razões sanitárias(?), reduz as hipóteses de qualquer fiscalização eficaz, e na prática inviabiliza a capacidade deliberativa do Parlamento. Já vamos com um mês de emergência e não tenho nota de qualquer pronunciamento efectivo da Assembleia sobre a torrencial produção legislativa do Governo.
A pretexto da accão urgente do Governo, que vai legislando de forma convulsa, o Parlamento desiste de fiscalizar o Governo a coberto da narrativa dominante (potenciada pelas recentes declarações do chefe do principal partido da oposição) de que em “guerra” não se critica os que estão na linha da frente, que não existe alternativa que não conferir poderes excepcionais ao Governo e que colocá-lo em causa é um acto de lesa-pátria que só traidores podem produzir.
Na verdade, a limitação dos direitos dos cidadãos motivada pelo estado de emergência está à vista de todos. Não é só o confinamento e as limitações à deslocação dos cidadãos, é sobretudo a brutal suspensão (supressão) do direito à propriedade privada e à iniciativa económica privada.
Não ponho em causa a necessidade de tais medidas destinadas a combater a pandemia. Algumas são óbvias e provavelmente sem alternativa válida. Mas por isso se exigiria do nosso Parlamento, em vez de tomadas de posição meramente simbólicas (como a peregrina ideia de comemorar o 25 de Abril contra todas as regras sanitárias), um papel activo e fiscalizador da acção do Governo.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.