O embaixador José Cutileiro, com 85 anos, morreu hoje em Bruxelas, onde vivia, disse à Lusa a sua mulher. Nascido em Évora a 20 de novembro de 1934, – onde fez a quarta classe, na escola da D. Maria Prégua – foi antropólogo, diplomata, poeta, cronista e escritor. Encontrava-se hospitalizado. José Cutileiro foi um dos negociadores da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE) e integrou a equipa de coordenação da Conferência de Paz para a Jugoslávia, em 1992 e foi igualmente um dos primeiros portugueses a terem sido recebidos por Nelson Mandela, quando este saiu da prisão e ainda passou, durante três anos, a meio da década de 90, pela Universidade de Princeton – onde esteve no Institute for Advanced Studies.
As raízes alentejanas de José Cutileiro integraram um universo em que a sociedade portuguesa estava bem representada. O pai, médico, cultivava as suas tradições republicanas, com frontal oposição ao Estado Novo. A mãe – rigorosa dona de casa – transmitia os valores católicos e a sua linha conservadora não a levava a contestar a liderança salazarista do Estado Corporativo e do mundo português de antes e depois da Segunda Guerra Mundial. No entanto, José Cutileiro sempre se assumiu como cético, educado como livre-pensador, num mundo em que não há deus.
Em tenra idade, José Cutileiro deixou Évora porque a família foi viver para Lisboa, embora a contestação política que o seu pai continuava a mover ao Estado Novo tivesse cavado antipatias políticas por parte da então direção do Centro de Saúde de Lisboa, tal como a interferência da PIDE o afastara do mundo académico – excluindo-o de um concurso para professor na Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi por isso que o seu pai passou a trabalhar para a Organização Mundial da Saúde, levando a família para fora do país, o que permitiu a José Cutileiro ter conhecido bem, ainda muito novo, a Suíça, a Índia e o Paquistão.
De regresso a Lisboa, José Cutileiro foi inscrito no Colégio Valsassina, onde terminou o liceu. Seguiram-se as frequências em vários cursos – Arquitetura, Medicina e Belas-Artes –, bem como a participação nas tertúlias da revista “Almanaque”, entre 1959 e 1961 e financiada por Figueiredo de Magalhães – o editor da Ulisseia – que apenas foi publicada durante dezoito números, funcionava no Chiado, e cuja redação era coordenada por José Cardoso Pires, tendo entre os seus colaboradores Alexandre O’Neill, Luís de Sttau Monteiro (com o pseudónimo de Manuel Pedrosa), Augusto Abelaira, José Cutileiro, João Abel Manta, Baptista Bastos e Vasco Pulido Valente.
Foi amigo de Mário Soares, que conheceu ainda antes do 25 de Abril, e com quem foi a Fátima – os dois não eram católicos – por causa de um episódio relacionado com o assassínio de Humberto Delgado. José Cutileiro sempre deu muita importância à coragem e à frontalidade de Mário Soares. No entanto, como o mundo de Lisboa era pequeno e o desejo de continuar a alargar horizontes facilmente o arrastava para fora do país, saiu para o Reino Unido, optando pela Universidade de Oxford para concluir a licenciatura em Antropologia Social e preparar um doutoramento, que concluiu em 1968.
No Reino Unido – onde viviam muitos intelectuais portugueses, vários como professores do King’s College em Londres –, fez a sua vida de académico, primeiro no St. Antony’s College, como fellow (de 1968 a 1971), passando depois para a LSE – London School of Economics and Political Science (de 1971 até ao ano da revolução em Portugal, 1974). Nessa altura, com a mudança de regime, José Cutileiro é nomeado, por Mário Soares, para conselheiro cultural da Embaixada de Portugal em Londres, de 1974 até 1977.
Inicia-se então a sua vida diplomática, como embaixador e representante de Portugal junto do Conselho da Europa, até 1980. Segue-se a Embaixada de Portugal em Maputo e depois o período em que foi nomeado representante permanente de Portugal junto da Conferência de Desarmamento na Europa, em Estocolmo, em janeiro de 1984.
No Governo de Cavaco Silva, em 1987, José Cutileiro foi chamado a Lisboa, sendo-lhe proposto o cargo de diretor-geral dos Negócios Político-Económicos, que coincide com a negociação do processo de adesão de Portugal à União da Europa Ocidental (UEO). A sua relevância política e diplomática internacional aumentou e por isso foi convidado a chefiar a delegação que negociou os termos da utilização da Base das Lajes, nos Açores, pelos EUA, em 1988 e 1989.
Seguiu-se um regresso a África, sendo nomeado embaixador de Portugal em Pretória em 1989. O passo seguinte na sua carreia foi o de conselheiro especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros para a Presidência Portuguesa da Comunidade Económica Europeia, coordenando a Conferência de Paz para a Jugoslávia, de Janeiro a Agosto de 1992, que então foi presidida por Lord Carrington, uma das personalidades emblemáticas da diplomacia internacional.
A sua carreira diplomática progride e leva-o a presidir ao Instituto Diplomático, e a assumir depois a secretaria-geral da UEO, em novembro de 1994, apoiado pelo Reino Unido e pela Holanda, na fase após a ratificação do Tratado de Maastricht, sendo reconduzido na secretaria-geral da UEO em maio de 1997.
Ainda na manhã de domingo, o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, deixou o seu depoimento sobre José Cutileiro. Foi “um homem muito inteligente, escrevia muitíssimo bem. Um grande ensaísta, um grande colunista, um grande comentarista e depois também um grande cronista, no sentido de que comentava sobre a vida e a vida dos outros e analisava de forma muito lúcida a vida nacional. Além disso conhecia muito a política internacional e fez durante muitas décadas comentários de política internacional. Portanto, reconhecemos o seu talento no que escrevia e na forma como escrevia e na maneira como via o mundo, a Europa e Portugal e o papel de Portugal. Marcou várias gerações. Fica aqui o meu testemunho de amizade e de agradecimento”, disse Marcelo Rebelo de Sousa.
Efetivamente, além da diplomacia, José Cutileiro marcou a vida nacional enquanto como cronista dos jornais “O Independente” e “Expresso”, sobretudo pelas suas crónicas ficcionadas, assinadas com o pseudónimo de Alfred Barnaby Kotter (A.B. Kotter) escritas entre 1982 e 1998. Assumido como aristocrata inglês, elitista, residente em Colares, Sintra, A.B. Kotter opinava sobre o Portugal pós-revolucionário – fazendo constar que os textos eram traduzidas pelo seu ‘criado’ português. Quando surgiram estas crónicas, houve muitos leitores que a princípio julgaram que Kotter era uma pessoa real. Mas a sua essência apareceu sob a forma de poesia, a sua poesia, alguma publicada no suplemento literário do Diário de Notícias, no tempo em que os jornais tiveram critica literária, no tempo de João Gaspar Simões – um dos primeiros biógrafos de Fernando Pessoa – e de Álvaro Salema, jornalista que dedicou a carreira à literatura e que foi muito considerado por José Cutileiro.
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