Globalismo vs. Nacionalismo
Depois do “America First” de Trump, do “Let’s Take Back Control” de Johnson, do “Brasil acima de tudo” de Bolsonaro e outras promessas de Xi-Jinping e de Putin de posicionarem os seus países no centro do mundo, a crise sanitária veio agora dar uma estocada final nas forças da globalização. Termos como “repatriação” e “capacidade de fabrico nacional” serão vistos com imbuídos de virtude.
Até mesmo políticas vetustas de “nacionalização” passarão a ser aceites como produto da independência necessária para que nenhum país, grande ou pequeno, possa ter que voltar a depender de qualquer outro, seja para o que for, máscaras, ventiladores mas também ovos e carne, cotonetes e álcool, componentes para antibióticos e para automóveis. Não interessa que a globalização tenha retirado 600 milhões de chineses da pobreza, garantido crescimentos económicos explosivos em países antes paupérrimos, como o Bangladesh, possibilitado a talentosos indianos trabalharem em Silicon Valley e a romenos e polacos irem para a Alemanha ou para o Reino Unido.
Não importa que cadeias de cooperação internacionais tenham permitido vencer o ébola e a varíola. Isto, claro, para não mencionar a mais óbvia das vitórias (e instrumento) da globalização, a World Wide Web, vulgo internet que, essa sim, mudou o mundo e dele fez um, e apenas um, e não a pobre soma das suas partes. A globalização voltará, porque apenas ela faz sentido. Nada disso interessa agora, ganha o nacionalismo.
Fronteiras Abertas vs. Controlos Fronteiriços
O medo da peste importada fez com que se levantassem as vozes clamando pelo fecho das fronteiras, embora o vírus já circulasse na comunidade e, portanto, o fecho de fronteiras não garantisse mais que uma falsa sensação de segurança. Fechar, fechar, fechar. Depois de décadas de crescente liberdade de circulação, apesar do 11 de Setembro, e em que o espaço Schengen representava o avanço último da confiança entre nações e um marco de civilização a que todos os países deveriam ambicionar, eis-nos perante a vitória das barreiras fronteiriças e da sua hedionda irmã gémea, a xenofobia.
É assim que assistiremos a um lentíssimo levantar de barreiras para fora da Europa, e mesmo dentro dela. Veja-se como a França e a Espanha impuseram quarentenas mútuas, que, como diz o povo, não é mais que “o roto a falar para o pobre”. Os Estados Unidos aproveitarão para dificultar o trânsito de pessoas e bens com a China, que culpa das maiores barbaridades, e também com a Europa, que vê como concorrente e não como aliada.
A humanidade quer viajar e explorar o mundo em busca de vida melhor. A prazo, as fronteiras tenderão a desaparecer. Mas, por agora, e talvez por alguns anos, esse anacronismo da política internacional, a fronteira, reaparecerá em força e sobre ela e sobre a sua defesa, muita ainda se irá escrever.
Instâncias Internacionais vs. Órgãos Nacionais
O ataque cerrado à Organização Mundial da Saúde é apenas mais um sinal da derrocada da ordem internacional vigente após a II Guerra Mundial e que os anteriores EUA, a NATO e a Europa Ocidental tanto fizeram por construir. Essa ordem baseava-se em regras e tratados multilaterais que facilitavam o comércio, a cooperação e a dissipação de litígios locais e regionais. Combatiam a fome e a doença. Promoviam a investigação e a justiça internacional. E também providenciavam a burocracia e organização necessárias à sua implementação.
A OMS, a FAO, a OMC (cujo Director-Geral acabou de apresentar a sua demissão) a OIT, o Tribunal Internacional da Haia e, obviamente, a sua casa-mãe, a ONU e o seu Conselho de Segurança são hoje organizações quase irrelevantes, objeto de instrumentalização em toda a espécie de litígios entre potências, diminuídas e desacreditadas nas missões que outrora lhe estavam confiadas. Até mesmo na União Europeia, um tribunal nacional (o Tribunal Constitucional alemão) ousa questionar um órgão europeu (o BCE) que responde perante o Tribunal Europeu de Justiça. E há quem lhe dê provimento e razão, ignorando os princípios fundadores da União da qual o povo alemão é, aliás, o primeiro e principal beneficiado.
A ordem internacional em que vivemos nos últimos 70 anos assiste aos seus últimos dias e o vírus também já atingiu a Europa. A pandemia nada mais é que um pretexto para aquilo que já se vinha desenhando. O caminhar da civilização é inexorável. No longo prazo, esta tem-se revelado cada vez mais generosa no serviço da humanidade.
Vivemos vidas mais longas e saudáveis que em qualquer outro momento da história. A pobreza cai consistentemente pelo mundo inteiro. O estado de direito vem fazendo o seu caminho e nunca tantos tiveram acesso a um sistema de justiça independente. Mas o caminho não se faz sempre em linha reta e ascendente. De vez em quando damos passos atrás. Mas temos que olhar para o horizonte e seguir sempre o rumo norte.