Nas últimas décadas, tornou-se comum ouvir comentários que comparam desfavoravelmente a economia do Velho Continente face à dos Estados Unidos. Mas o que está acontecer nos Estados Unidos deveria merecer-nos uma profunda reflexão sobre as lições a retirar das fragilidades do sistema americano, de maneira a que possamos reformar o modelo social europeu sem destruir aquilo que tem de positivo.
O grande problema dos EUA é a enorme desigualdade na distribuição da riqueza e no acesso à educação (logo, ao emprego) e à saúde. Nas últimas décadas, apesar da prosperidade crescente, dezenas de milhões de pessoas foram deixadas para trás, tanto entre as minorias – que continuam a ser alvo de racismo e violência policial, como se viu no chocante caso de George Floyd – como entre muitos americanos brancos que hoje vivem pior do que há 30 ou 40 anos. Em 1973, os 1 por cento mais ricos detinham 8 por cento do rendimento nos EUA (excluindo ganhos de capital); em 2010, esta fatia já tinha aumentado para 17%. Hoje será ainda maior. Como a História demonstra, nenhum sistema económico e social consegue sobreviver durante muito tempo quando as desigualdades se tornam socialmente insustentáveis, porque a partir de certa altura as pessoas que ocupam a base da pirâmide chegam à conclusão de que nada terão a perder com o derrube da ordem vigente.
A erosão da democracia americana, a que temos assistido desde os anos 90 e que acelerou com a grande crise de 2007/2008, não será alheia a este facto. A crise abalou a fé nas instituições e alargou ainda mais o fosso entre pobres e ricos, criando um terreno fértil para a ascensão de populistas nativistas como Trump, que se alimentam do ódio e da divisão. Entretanto, a polarização ideológica torna cada vez mais difícil um verdadeiro diálogo entre os dois grandes campos da política americana. Cada vez mais, conservadores e progressistas encaram-se mutuamente não como adversários políticos, com quem é necessário colaborar quando disso depende o bem do país, mas como inimigos existenciais. É preciso recuar até à véspera da Guerra da Secessão, há 160 anos, para encontrar uma altura em que os Estados Unidos estiveram tão divididos, o que, naturalmente, não augura nada de bom.
Como reza a letra dos Pink Floyd,
“With (with, with, with), without / And who’ll deny it’s what the fighting’s all about?”