Em 1907, no seu livro “The Rate of Interest: Its Nature, Determination and Relation to Economic Phenomena”, Irving Fischer repescou uma antiga receita para produzir economistas: «basta ensinar um papagaio a dizer “oferta e procura”». A fórmula terá sido, presumivelmente, apresentada pelo ensaísta, escritor e historiador escocês Thomas Carlyle, que também cunhou o termo dismal science (a triste ciência) para designar a Economia.
Thomas Carlyle viveu no século XIX. Nasceu em 1795, não muito depois de 1776, ano em que foi publicado o “Uma Investigação sobre A Natureza e A Causa da Riqueza das Nações”, de Adam Smith. Foi, portanto, um contemporâneo dos primórdios da Ciência Económica. Tendo morrido em 1881, já não pôde ler “Princípios de Economia” de Alfred Marshall. Tal como não pôde ler a alusão que Irving Fischer lhe fez (embora sem o nomear), seguida do esclarecimento de que “oferta e procura” é uma resposta sempre certa para a explicação da formação de preços no mercado, mas uma explicação muito incompleta, que basicamente nada diz.
Não basta, pois, papaguear “oferta e procura” para se ter um economista. Os economistas têm de aprender teoria do consumidor e teoria do produtor, para perceber o que está subjacente à procura e à oferta, respectivamente. Na cadeira introdutória de Microeconomia, aprendem igualmente que, se o bem, o serviço ou o factor de produção em causa for homogéneo, se o mercado tiver um número muito grande de compradores e de vendedores, se ambos puderem entrar e sair do mercado sem barreiras e se todos tiverem a mesma informação e esta for completa, então estão perante um mercado de concorrência perfeita.
Num mercado de concorrência perfeita, o preço de equilíbrio é aquele que faz com que a quantidade procurada seja igual à quantidade oferecida. Um papagaio não consegue calcular que preço é esse, mas também não é esta noção elementar de equilíbrio de mercado que faz um economista.
Como deve ser evidente, as condições para que a concorrência seja perfeita são difíceis – senão, mesmo, impossíveis – de reunir (algo comum quando se trata de perfeição). Ao deixar cair uma ou várias daquelas hipóteses, passamos a lidar com outras estruturas de mercado, mais complexas, onde determinar o preço de equilíbrio não se resume a traçar duas curvas ‒ que, curiosamente, costumam ser representadas por segmentos de rectas ‒, com inclinações opostas, e a descobrir o ponto onde se intersectam. E assim surgem os vários ramos da Microeconomia, que se dedicam a explicar o funcionamento de mercados que se afastam da concorrência perfeita.
Um mercado onde tal é patente é o da habitação. Não é fácil pensar num outro que fuja tanto aos requisitos de concorrência perfeita. As características muito particulares da habitação determinam que o seu mercado funciona de um modo diverso da maioria dos outros, pelo que há que estudá-lo especificamente.
1. Cada casa é um caso
Uma primeira particularidade da habitação é a sua ligação ao espaço e o facto de estar fixa nele. Não é à toa que usamos a palavra imóvel para nos referirmos a casas, é precisamente traduzindo este facto. A localização de uma casa ‒ nas acessibilidades que tem, na oferta de serviços públicos que proporciona, na vizinhança que apresenta ou na qualidade do espaço que a envolve – integra, assim, aquilo que a casa é. Mas, se as casas estão fixas no espaço, também é verdade que num mesmo ponto do espaço só pode existir uma casa. E basta isso para que possamos dizer, em rigor, que não existem duas habitações iguais. Ainda que situadas no mesmo prédio, duas fracções distinguir-se-ão pelo andar em que estão e/ou pelo lado em que ficam.
Mas, além da localização, há um conjunto de outras características, como a área, a tipologia, a qualidade da construção ou os acabamentos, que são fundamentais para definir um alojamento. Ou seja, um segundo aspecto distintivo do bem habitação é que ele não é homogéneo. Pelo contrário, está nos antípodas da homogeneidade. Uma casa é um bem compósito, isto é, pode ser conceptualizada como um conjunto de atributos.
Daqui decorre que o mercado imobiliário seja extraordinariamente segmentado. E, como a habitação é um bem duradouro (que o tempo danifica, mas cuja degradação é passível de controlo e de reversão), uma das segmentações possíveis é aquela que distingue as casas novas das usadas.
Uma outra implicação da durabilidade é a de que os imóveis constituem uma forma de deter riqueza, constituindo, habitualmente, o maior activo que as famílias possuem, é normalmente sob esta forma que está constituída a sua poupança. E, por isso, uma casa pode ser comprada para o próprio e/ou a sua família nela morarem ou para gerar rendimento. A habitação é, assim, um bem de consumo e um bem de investimento, sendo que o consumo de habitação se pode fazer pela via da aquisição ou pela do arrendamento.
Desta descrição deve ser óbvio que o mercado imobiliário é extraordinariamente segmentado e que, portanto, não tem um grande número de compradores e vendedores. E também não é um mercado sem barreiras nem com informação perfeita e simétrica, está muito longe disso.
2. Casar procura e oferta
A curva da procura de um bem mostra, para cada nível de preço, as quantidades que o consumidor está disposto a adquirir. Assim se aprende numa disciplina introdutória de Economia, onde também se ensina que subjacente a essa curva estão as preferências. Tratando-se de habitação, estamos, como referido, perante um bem compósito. Logo, as preferências do consumidor dizem respeito aos atributos das casas. Como os imóveis diferem nas suas características, o consumidor irá valorizá-los diferentemente. Dessas diferentes valorizações surge a curva da procura.
Ou seja, no mercado imobiliário, a curva da procura do consumidor não deve ser interpretada como uma relação entre preço e quantidade, mas como sim como o preço que aquele se dispõe a pagar por cada qualidade de alojamento, o chamado preço de reserva. Claro que essa disponibilidade a pagar será tanto maior quanto maior for o rendimento, quanto menor for a taxa de juro (e, de um modo geral, mais acessível o crédito) e quanto menos substitutos existirem.
Naturalmente, os gostos diferem muito, mas há qualidades mais ou menos consensuais e há tendências. Por exemplo, será tranquilo dizer que é opinião generalizada que ter segurança no bairro é melhor que ter criminalidade. E é razoável assumir que a maior mobilidade geográfica no emprego esteja associada à opção pelo arrendamento em vez da compra.
Quem coloca uma casa no mercado também tem um preço de reserva, isto é, um valor mínimo que exige para vender ou arrendar o imóvel. Os factores que o influenciam dependem de estarmos a falar de arrendamento, da venda de habitação usada ou da venda de habitação nova. No caso desta última, relevam, designadamente, o preço da terra, o custo dos materiais, os salários no sector da construção e a burocracia associada ao licenciamento de obras. No arrendamento, tem especial importância o enquadramento legal que define níveis de risco quanto às situações de incumprimento do inquilino ou o nível de fiscalidade.
Sendo a habitação um bem fixo no espaço, não existe um mercado físico que promova o encontro entre procura e oferta. Os sites de imobiliário vieram facilitar o exercício, mas o mercado imobiliário continua a assemelhar-se ao do trabalho no aspecto em que compradores/inquilinos têm de pesquisar habitações que correspondam aos seus desejos e vendedores/senhorios também têm de se esforçar para descobrir quem mais valorizará o imóvel que estão a oferecer (ou contratar um agente que os substitua nessa missão).
Nessa senda, uma estratégia será anunciar um valor baixo, de modo a atrair muitos consumidores; mas é mais comum que o montante pedido seja alto, para selecionar já os pretendentes com os preços de reserva mais elevados. Num ou noutro caso, convém não confundir o preço a que uma casa é colocada no mercado com aquele a que acaba por ser transaccionada.
O preço a que uma casa é transacionada é, então, aquele que for acordado entre vendedor/senhorio e comprador/inquilino, resultando muitas vezes da negociação entre ambos. Portanto, os valores por metro quadrado que surgem nas estatísticas correspondem ao que alguém efectivamente se dispôs a pagar e ao que alguém se dispôs a receber. Esses valores são naturalmente indicativos e ajudam a formar expectativas (e a reduzir a imperfeição da informação), pelo que influenciam os preços de reserva, mas não desempenham o mesmo papel que etiquetas de preço em prateleiras de supermercado.
Obviamente, que o preço acordado esteja mais próximo do limite superior do comprador/inquilino ou do limite inferior do vendedor/senhorio depende do poder negocial de cada uma das partes. É pensar no mercado de transferências dos jogadores de futebol, porque é bastante parecido.
Aqui convém fazer mais um esclarecimento. Como anteriormente mencionado, a compra de uma casa pode ocorrer por motivos de investimento. No debate sobre habitação, frequentemente este tipo de aquisição é confundido com especulação, termo que também é erradamente usado para referir um aumento dos preços de venda (e até de arrendamento). Quando existe especulação, há necessariamente subida dos preços, mas a subida dos preços não implica especulação. Como exposto, há vários factores que explicam que os preços subam e uma alteração nos fundamentos não é especulação. Mas como distinguir?
Os dados das vendas de casas não estão separados entre aquelas que foram para consumo e as que foram para investimento e muito menos revelam quais foram novamente vendidas a seguir. Arrendar um imóvel, porém, em vez de o comprar, só serve o propósito de consumo. Portanto, no montante das rendas encontramos o valor de uso da habitação. Para o senhorio, as rendas são a remuneração do seu investimento e, consequentemente, quem compra casa numa lógica de investimento vai valorizá-la em função das rendas que espera que ela gere. De onde se conclui que um aumento do rácio entre o preço do metro quadrado na venda e o preço no arrendamento é indício de que se poderá estar a assistir a um fenómeno especulativo ‒ mas apenas isso, um indício.
3. Quem casa quer casa e os solteiros também
Enquanto bem de consumo, a habitação vem responder a uma necessidade primária. Ter um sítio adequado onde viver é uma condição fundamental de dignidade. A privação de um alojamento é uma fonte de desigualdades económicas, sociais, educacionais ou de saúde, o que reduz o bem-estar e, por sua vez, reforça a discriminação habitacional, a segregação e a exclusão social. Por isso, a habitação é reconhecida como um direito pela legislação internacional em matéria de direitos humanos.
Em Portugal, o direito à habitação está garantido pela Constituição que, no seu artigo 65.º, estabelece que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”, o que é reafirmado na Lei de Bases da Habitação, aprovada a 5 de Julho de 2019. O mesmo artigo 65.º determina também que o Estado deve implementar uma política de garantia do direito à habitação.
Para a eficácia de tal política concorre decisivamente a compreensão dos mecanismos que moldam o mercado sobre o qual se pretende agir. Os parágrafos anteriores mostraram que a habitação tem características muito particulares que afastam o seu mercado da estrutura de concorrência perfeita e que tornam o habitual instrumento das curvas da procura e da oferta bastante mais complexo. Portanto, também mais complexa se torna a tarefa de pensar uma política de habitação que minore as imperfeições de mercado descritas, ao invés de introduzir mais fricções.
No mercado de arrendamento, por exemplo, frequentes alterações legislativas constituem, por si só, um custo, na medida em que obrigam a uma constante actualização sobre as normas aplicáveis. Além disso, contribuem para um clima de maior incerteza quanto às regras aplicáveis, ao qual os senhorios responderão com um aumento das rendas pedidas, de modo a cobrir o acréscimo de risco. No limite, podem mesmo retirar as casas do mercado, já que estas são bens que não têm de ser consumidos no imediato.
Por isso, na concepção de uma política de habitação, é fundamental acautelar estes aspectos dinâmicos e não implementar medidas que protegem quem já está no mercado, prejudicando quem a ele quer aceder, ou seja, medidas que, no longo prazo, lesam precisamente aqueles cujos direitos se queria defender.
Como referido, a habitação é também usualmente o maior activo que os cidadãos detêm, o que significa que flutuações no preço da habitação representam variações na riqueza das famílias. Acresce que é habitual que a aquisição de um imóvel se faça com recurso ao crédito, pelo que o comportamento do mercado imobiliário tem grande influência sobre a estabilidade financeira (como, de resto, se viu com a recente crise de 2008). Recorde-se, ainda, que, sendo um bem com grande ligação ao território e nele fixo, a habitação tem implicações óbvias para o mercado de trabalho.
Tudo isto determina que seja um sector de enorme interesse económico e social, importando intervir com conhecimento do mesmo.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.