“Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas”, Antoine de Saint-Exupéry.
Referenciar Exupéry é agradecer-lhe e homenageá-lo, neste 2020 em que se assinalam os 120 anos do seu nascimento. Fazê-lo interagir, nesta reflexão de Natal, é incentivar a redescobrirmos o encanto dos lugares subjacentes, desde «O Principezinho» à chegada do ‘Príncipe da Paz’, que nasce sempre todos os natais para vir e ficar, para ser ‘Deus connosco’.
Esse famoso livro, e que um recebi duma grande Amiga há mais de 20 anos, pode ajudar-nos em tudo o que façamos. Já que fala como deve falar – tocando a alma: transborda de escolhas, projetos, sonhos, vida… Porque “o essencial é invisível aos olhos: só se vê bem com o coração”. E o que são as semanas do tempo natalício senão essa manjedoura e o consubstanciar disso mesmo? “Oh coisa simples” – que resolvemos complicar – é este cativar que se faz cultivar no renovamento de cada ciclo anual de renascimento. E completo, partilhando, com a brilhante dedicatória que ela me empregou: “Deixa que a tua vida corra segundo foi destinada. Segue sempre a voz que te vai no coração e serás o que quiseres!”.
E neste cativar que cultiva e cultivo que cativa, recordo um episódio concreto e adequado, que nunca escrevi e quase nunca contei.
Há uns anos, enquanto seminarista, conheci um sem-abrigo no morro da Sé do Porto. Permanecia lá, na área do mercado de S. Sebastião. E começámos, um dia, a comunicar reciprocamente, desde o momento que lhe levei umas roupas. E a minha ligação a ele, em ajudá-lo, cresceu. Sempre que eu saía para as aulas, de manhã cedo, passava por ele, saudava-o. E levava-lhe um iogurte, bolachas e uma fruta, que tinha sempre comigo no quarto. Ele gostava. E, ferialmente, concedia-lhe esse pequeno-almoço.
Passados uns dias, contou-me espontaneamente a sua história. Era dezembro. Num outro dia, a duas semanas de iniciar o Natal, cruzámo-nos na praça: subiu comigo, a pé, a Av. Dom Afonso Henriques e dizia-me que já não via a filha há muito e que gostaria de ir passar o Natal com ela, de surpresa, a Coimbra. Tinha ido à Estação de S. Bento, apenas saber horários e preços. Eu ofereci-me, de imediato, para lhe pagar o comboio: era o meu presente de Natal. Ele agradeceu, mesmo radiante! Como era já noite, uma noite densamente arrefecida, e eu tinha de regressar ao Seminário – além de não ter dinheiro suficiente comigo, na altura, para lhe dar –, combinei com ele:
– Amanhã trataremos juntos do bilhete, pode ser? Assim concordou, satisfeito.
E chegou o dia seguinte, comigo animado. Qual o meu espanto, em angústia misturado, quando vi que ele não estava. Procurei-o por toda aquela zona e perguntei, a este e àquele. Mas não o encontrei… ninguém sabia dele! Ali voltei, mais tarde. Nada. O mesmo sucedeu no dia após esse. E, igualmente, dois e três dias depois. Eu estava num vazio, sem respostas. Ainda p’ra mais porque eu já não iria estar durante a primeira semana de interrupção de aulas, antes das festas do Natal, em que ia de ‘férias’ a casa dos meus pais.
Dias depois, quando fui à Sé, para a missa do dia de Natal, reparei que ele continuava ausente… Porém, sentia-lo comigo, em espírito.
Soube, no primeiro dia do 2.º período, que essa ausência terrena era definitiva: tinha falecido. Fora, precisamente, naquela noite fria em que lhe tinha brindado com o calor d’alegria. Já não pôde desfrutar do meu presente, nem ele ser presente para a filha… Todavia, continua bem presente na minha memória, sobretudo quando passo naquele morro ou quando se faz Natal. E, deste modo, desembrulho em mim esta verídica história.
Nela reencontro aquilo que aprendi de Exupéry, com a sua «Cidadela»: o sentido do que é autêntico, sincero e participado, pois “só quem colabora é”. Sentido revigorado no Natal. Sejamos a extensão daquilo que falta aos pinheirinhos enfeitados nas nossas casas: as suas raízes, com as quais viveremos, mais robustecidos, em nós e nos outros, prontos a cativar muitos mais neste eterno cultivar. E que seja para memória futura e futuro da memória. Um santo e saudável Natal!