Sem liberdade de expressão o tipo de sociedade plural, livre, aberta e segura em que acreditamos viver não é possível. Por isso, o direito de cada um à sua opinião livremente expressa é um valor fundamental. Mas não ilimitado. Limitam-no o convívio com outras liberdades fundamentais. Se o mundo fosse composto apenas por opiniões a liberdade de expressão poderia ser total. Como não é, a liberdade de expressão só pode ser total na exacta medida em que não extravase o mundo da opinião. Mas qual o critério para pensar os limites à liberdade de expressão sem fazer desta uma expressão de plástico?
Revejo-me na tradição da 1ª emenda da Constituição norte-americana: desde que não passe à acção, toda a opinião tem o direito à expressão. E toda quer dizer toda, mesmo contra a democracia, o pluralismo, a igualdade, e a própria liberdade de expressão. Mantendo-se no plano abstracto, toda a opinião deve poder ser expressa. Na verdade, existindo, é mesmo vantajoso que seja expressa e discutida. Más opiniões caladas são piores que más opiniões ditas.
Este critério que indiquei é estritamente formal, não olha ao conteúdo mas apenas verifica se as opiniões são ou não, na verdade, incitamentos diretos à violência ou discurso de ódio intencional e violento sobre pessoas concretas. Mas pode haver outro, um critério que avalia conteúdos, designadamente se contradizem e antagonizam, no plano da opinião, valores ou factos tidos por tanto ou mais fundamentais que a própria liberdade de expressão.
A primeira posição preocupa-se com o papel causal das opiniões, independentemente do seu conteúdo, a segunda posição preocupa-se com o conteúdo de opiniões, independentemente de terem ou não um papel causal. Sustento que a primeira posição é a que melhor nos serve, mas a segunda posição tem muitos e importantes apoios mais perto de nós — e que não são de hoje. Desde logo, a Convenção Europeia para os Direitos Humanos e o Tribunal Europeu para os Direitos do Homem têm considerado lícito travar a liberdade de expressão de opiniões que contradigam valores basilares proclamados e garantidos pela própria Convenção.
Recordo-me do caso de Roger Garaudy, filósofo francês dado a grandes reviravoltas intelectuais, que tendo começado por ser uma marxista ortodoxo, depois tornou-se islâmico e, por fim, um negacionista convicto do holocausto. As suas opiniões negacionistas valeram-lhe uma condenação em tribunal na França, tendo perdido o recurso que interpôs e finalmente o apelo para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
Garaudy não foi condenado por incitar à violência, mas pelas suas opiniões. Ofendiam? Sim, mas por si mesma a ofensividade não é critério para excluir uma opinião. Punham em causa as bases do funcionamento da sociedade e do espaço público? Não creio. Mas ainda que fosse esse o caso, são opiniões aceitáveis se apenas põem em causa tais bases de um ponto de vista teórico, opinativo, debatível, e não de um ponto de vista de acção realmente ameaçadora. E se existem, devem expressar-se. As opiniões aceitam-se ou criticam-se, não se calam.
A tensão entre estas duas perspectivas não é nova e são muito diferentes os contextos históricos que lhes estão na origem. A primeira emenda remonta a 1791 num contexto fundacional. A Convenção Europeia, subscrita pelos seus signatários em 1950, resulta de um pós-guerra apocalíptica e é muito mais preventiva, convivendo com fantasmas que é preciso, justificadamente, manter longe. Esta é, portanto, uma tensão sobre limites da liberdade de expressão, mas nunca uma tensão que ponha em causa um acordo sobre o lugar fundamental da liberdade de expressão nas nossas sociedades, estejamos do lado de cá ou do lado de lá do Atlântico Norte.
Mas hoje a tensão é outra. Tanto na Europa como nos Estados Unidos, cresce um protesto contra um cerco à liberdade de expressão. Até que ponto esse é um protesto proporcionado? E até que ponto serve realmente à defesa da liberdade de expressão e não a outras agendas que nos devem preocupar, pelo que trazem consigo de repressivo e até mesmo de violento?
A falta de proporção é evidente. Persiste um enorme consenso sobre o lugar fundamental da liberdade de expressão e as dúvidas sobre os seus limites não são diferentes das do passado. O que é novo, então? A religião não teve no passado menos dificuldades em lidar com liberdades de expressão pouco respeitosas. Não nos lembramos da reacção ao cartoon do António, em 1992, representando o papa João Paulo II de preservativo enfiado no nariz? Houve queixas ao regulador e petições à Assembleia da República subscritas por dezenas de milhar.
E, no mesmo ano, não houve um sub-secretário de estado da cultura a brutalizar a literatura portuguesa com a exclusão do Evangelho segundo Jesus Cristo de um prémio, levando José Saramago a exilar-se? Estaremos esquecidos da suspensão da emissão do “Humor de Perdição” do Herman José, no distante ano de 1988? E por esse mundo fora, urbi et orbi, não foi o Index Librorum Prohibitorum, índice de livros proibidos pela Igreja Católica, apenas abolido em 1966, já terminado o Concílio Vaticano II?
Pode dizer-se que dantes eram pessoas de direita que protestavam e que agora são as de esquerda. Sim, é verdade, mas não protestam pelo mesmo. A esquerda toma posição agora porque o direito a não se sentir ofendido transitou de maiorias poderosas que não toleravam a diferença para minorias vulneráveis e, apesar disso, cada vez mais expostas a uma liberdade de ofender cada vez mais tomada como o normal estado da liberdade de expressão. Essa é a novidade.
Se não há razões para acreditar numa correspondência razoável entre a escala do protesto e um normal quotidiano da liberdade de expressão nos nossos dias, há no entanto uma agenda que, essa sim, merece ser identificada e alvo de protesto. É a denúncia mistificadora de um conflito entre liberdade de expressão e politicamente correcto, em que este é apresentado como um neutralizador da essência da liberdade de expressão por excluir do discurso tudo aquilo que possa ser ofensivo para alguém.
Esta denúncia adultera não só a representação de politicamente correcto, mas sobretudo a da própria liberdade de expressão. A agenda é esta: fazer passar a tese de que proteger a liberdade de expressão é proteger a liberdade de ofender. Isto é fazer da liberdade de ofender fundamento e razão de ser central da liberdade de expressão, quando, tudo ao contrário, é a liberdade de expressão que justifica o direito a ofender. O valor está na liberdade de expressão e não no direito a ofender e ofender não deve transitar de mal menor a valor maior, alegadamente central para a liberdade de expressão.
É esta inversão que cola a liberdade de expressão ao politicamente incorrecto — que visa minorias através da prática de linguagens de exclusão — e a descola do politicamente correcto. Esta agenda compromete o espaço público, que necessariamente tem por pilares a liberdade de expressão mas igualmente a linguagem inclusiva, que garante uma posição igual a todos os que o frequentam (é isso o politicamente correcto, por infeliz que seja a expressão que o designa!). E comprometido o espaço público, decerto é a própria liberdade de expressão que fica sob pressão. O sofisma maior neste debate é supor que é o politicamente correcto e não o politicamente incorrecto o que verdadeiramente pode vitimar o espaço público, o seu pluralismo e, a tentar respirar no meio deste ambiente em compressão, a liberdade de expressão.
Aliás, esta agenda teve variações anteriores. Ainda nos anos 90, a acusação de que os pensadores pós-modernos não seriam, em geral, mais do que embusteiros e de que era urgente restaurar os direitos do saber verdadeiro expulsando-os do templo do saber — o inquisidor Sokal tratou de lhes montar o processo com forte plateia cá em Portugal. Depois, a partir da década seguinte, a acusação de que o relativismo era uma ditadura a que havia, de novo com urgência, de se pôr termo. Ou isso ou o saber colapsaria num tempo para o qual astrónomos e astrólogos seriam todos igualmente válidos, um tempo para o qual os valores de todos, imposta a ditadura do relativismo, teriam o mesmo valor, portanto nenhum.
Mas, pós-saber e pós-valores foram apenas as variações que prefiguraram a nova onda de intransigência em curso, que, como as anteriores, acena com um fantasma — agora o de que estaremos a entrar num tempo de pós-liberdade de expressão. Ou se aceita que a liberdade de ofender é parte constitutiva e incondicional da liberdade de expressão ou esta é, dizem, de plástico. Pois porque, no seu âmago, proteger a liberdade de expressão consistiria em proteger a liberdade de ofender. Na verdade, é sempre uma reacção de superioridade que está em jogo — nós, pais da ciência, nós pais dos valores certos (que separámos há muito poder secular e religioso, e o privado do público) nós pais da liberdade de expressão. Mas, sempre do lado reacionário de um lugar que se faz direito de si contra os outros e que merece muito pouco reivindicar-se da tradição que mobiliza em seu proveito.
O ataque ao pluralismo, ao espaço público e à liberdade de expressão, apesar de feito em nome desta, há-de passar à história, mas outras figurações virão enquanto não tivermos um cosmopolitismo sem centro privilegiado, verdadeiramente do mundo, que destrone esta pretensão de superioridade.
Em todo o caso, há pelo duas mudanças no espaço público que devem reflectir-se cada vez mais no entendimento da liberdade de expressão.
1. Hoje, sabemos que o poder de as palavras magoarem é maior do que se sabia no tempo de Voltaire, em que a psicologia como ciência era apenas uma vagueza no horizonte. Sabemos, de saber tão científico como o de qualquer outra ciência digna desse nome, que há violência verbal que traumatiza e deixa marcas para a vida, sem cicatrizar, incapacitantes. Sabemos do que bullying, assédio sexual verbal, assédio moral, racial, étnico, religioso são capazes. Sabemos que as palavras podem ser destrutivas ao ponto de serem letais. Na verdade, podem ser deliberadamente ditas ou escritas com esse propósito. Dizer que não é assim é dizer que um ou dois séculos de psicologia científica não demonstraram nada. E neste sentido a definição da fronteira entre expressão e acção deve ser mais detalhada. Não significa isto menos liberdade de expressão, mas definir-se com mais pormenor os seus limites. Porque há mais consciência de que neles se joga a possibilidade da violência.
2. Hoje, o pluralismo já não é apenas um pluralismo de pontos de vista, opiniões mais ou menos contraditórias que têm de encontrar uma forma de conciliar-se num mesmo espaço público. O pluralismo é também de modos de estar e de ser, que têm, igualmente, de encontrar uma forma de conviver apesar de serem, entre si, mais ou menos contraditórios. Isto implica um espaço público que, justificadamente, prolonga a sua liberdade de expressão em práticas de inclusão, como condição para um cosmopolitismo da proximidade.
Uma coisa é certa, não há futuro livre sem liberdade de expressão, aviso que serve também para quem mais grita hoje pela liberdade de expressão.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.