A proposta do Orçamento do Estado para 2022 foi chumbada na generalidade pelo Parlamento a 27 de outubro. Dias antes da votação, Luís Marques, Country Tax Leader da EY Portugal, participou no webinar do Jornal Económico sobre essa mesma proposta de lei orçamental, em particular sobre o conjunto de medidas que teriam impacto nas empresas, que considera “pobre” e “manifestamente insuficiente”.
Leia a entrevista em baixo, ou reveja este webinar na íntegra aqui.
JE Brand Channel (JE): Como avalia, na generalidade, a proposta do Orçamento do Estado para 2022?
Luís Marques (LM): O Orçamento do Estado para 2022 (OE2022), da forma como foi apresentado, quer previamente pelo primeiro-minsitro, quer depois na conferência de imprensa do dia 12 de outubro, pelo ministro das Finanças, tem sido apelidado por parte do governo como “um orçamento bom”.
“Bom”, no sentido em que introduz algumas medidas que podem trazer alívio fiscal para a denominada classe média, ao nível das famílias, mas de facto eu não diria que é assim tão bom (e digo mesmo que é pobre) do ponto vista do impacto que traz para o tecido empresarial, dada a escassez de medidas que, do ponto de vista fiscal, são contempladas ao nível das empresas.
JE: Os Orçamentos também são considerados um instrumento político, por muito que se foquem na política fiscal – é o caso do OE2022? Ou seja, está o Executivo a instrumentalizar o OE para concretizar o seu programa? Que risco existe se esta proposta não receber luz verde da restante esquerda?
LM: Esta tem sido a discussão ao longo dos últimos dias. Naturalmente que o Orçamento do Estado (OE), além de ser um documento onde o governo tenta equilibrar as contas públicas, não deixa de ser um instrumento de política, isto porque o OE incorpora aquilo que são as medidas programáticas do governo e as suas opções.
O govenro tentou equilibrar aquilo de que já se falava há algum tempo – que era dimunir a carga fiscal direta à classe média – e isso conseguiu com a tal revisão dos escalões, mas ainda assim os partidos mais à esquerda, que têm apoiado o governo, acham que o orçamento é bastante escasso.
JE: Esta semana o Presidente da Repúblico alertou para a necessidade de se evitar “uma crise política”.
LM: Vários outros agentes têm dito o mesmo. Provavelmente, o que o país neste momento menos precisa é de uma crise política. Toda a gente está a esticar a corda – isso é visivel. Há uma grande pressão para dotar o SNS de mais recursos e de regimes de exclusividade por parte dos médicos que para ele trabalham.
Também há pressão para um aumento generalizado das pensões (e não só das pensões mais baixas onde o Executivo já propõe os tais 10 euros). Já era uma repetição [do OE2021] e a mesma repetição está a ser feita contemplado a medida apenas a partir de agosto ainda que depois, na fase final, tenha sido possível retroagir a 1 de janeiro. Essa, penso, vai ser uma das medidas que o governo vai ter que acabar por ceder aos partidos de esquerda.
De facto, se não se chegar aqui a consenso ou a uma plataforma de entendimento, existe um risco claro de mergulhar o país numa crise política, porque eu não acredito que este governo vá governar o país numa base de duodécimos. Podemos estar a caminhar para uma situação de possível cenário de eleições antecipadas.
JE: A proposta traz algum alívio fiscal às famílias, em sede de IRS, é certo, mas o Conselho Nacional das Confederações Patronais acusou o Governo de ignorar “por completo” as sugestões apresentadas pelos patrões em setembro e por não concretizar “qualquer desagravamento” nas taxas de IRC e nos regimes das tributações autónomas – o que pensa desta matéria?
LM: Essa é a tal pobreza que eu referi há pouco, a que assistimos neste orçamento nas medidas que contempla para o tecido empresarial. Muitas eram as medidas que vários sectores (como a hotelaria e a restauração) reclamavam, nomeadamente um decréscimo – ainda que transitório e temporário – da taxa de IVA reduzida a 6% que se pudesse aplicar à generalidade dos serviços prestados por este sector.
Não foi contemplado também um conjunto de medidas de desagravamento fiscal ao nível das tributações autónomas, ou outras como as que são referidas no survey feito pela EY poucos dias antes da apresentação da proposta, quando levantámos as medidas que poderiam ter sido incluídas. Nenhuma dessas aspirações acabou por ser contemplada pelo Executivo. Há, de facto, medidas que podiam ter sido feitas; não foram – é uma opção do governo. Não me parece também que sejam essas as medidas que os partidos mais a esquerda preconizam.
JE: Os empresários mostraram alguma apreensão quanto às negociações porque acreditam que estas possam conduzir a “novos custos permanentes do Estado” – se for o caso, podem esses custos ser um entrave à retoma económica?
LM: Naturalmente que sim. Se olharmos para aquilo que o tecido empresarial sofreu durante a pandemia, desde março de 2020 até agora, há muitos sectores, uns mais que outros, fustigados mas que, na generalidade, foram fortemente penalizados. Isto num momento em que se perspetiva algum crescimento económico: o próprio governo prevê esse crescimento na casa dos 5,5% do PIB, para o próximo ano.
Aumentar custos, nomeadamente o salário mínimo nacional (SMN) – não digo que não concordo, é algo que deve ser feito por uma questão de dignidade das pessoas que recebem essa quantiam -, mas deve ser feita de forma mais progressiva. Aquilo que foi estabelecido como o objetivo do aumento do SMN foi feito numa fase pré-pandemia e a fase da pandemia agravou as condições nas quais o tecido empresarial pode contemplar esse tipo de medidas.
Tudo o que sejam custos que possam aumentar os custos de operação do tecido empresarial deveriam ser publicados. Aumentando a despesa pública vamos diminuir a capacidade do Estado de investir mais no setor das empresas e no próprio investimento público. Deve haver ponderação e equilíbiro.
JE: Esperava alguma medida de alívio fiscal mais arrojada desta proposta? Por exemplo, no IVA para os sectores mais afetados pela pandemia, e que são abrangidos pela taxa intermédia?
LM: Esperava, sendo certo que a minha convicção é de que isso não iria acontecer. Achava que era justa, fazia sentido. Por vezes, as diminuições de taxas podem conduzir a aumentos de receita, nomeadamente pelo consumo das famílias.
Não sei se esta redução da taxa do IVA no sector da hoteraria e restauração teria impacto no preço final para o consumidor. Com certeza que não. Iria aumentar provavelmente a margem dos operadores, mas estes conseguiriam manter postos de trabalho, não promovendo o despedimento e, com isso, diminuindo os encargos sociais que o Estado ia ter. Aumentaria também a sua capacidade de investimento e renovação dessas unidades hotelerias e restaurantes.
Esperava também algum desagravmento nos escalões da derrama estadual, do IRC, ou até nas tributações autónomas, por exemplo com a utilização de viaturas mais amigas do ambiente: as viaturas híbridas ainda pagam alguma, que considero pessoalmente excessiva.
Ao nível do tecido empresarial, o OE é manifestamente insuficiente.
JE: Falamos frequentemente de “alívio fiscal”, mas pode-se esperar sempre um alívio? Na proposta constam até medidas de agravamento das obrigações fiscais, como prazos mais curtos para a comunicação de faturas.
LM: Estamos a falar de uma redução de sete dias. As empresas tinham que comunicar as faturas atá ao dia 12 e passam a comunicar atá ao dia 5, no Portal das Finanças da Autoridade Tributária e Aduaneira. Há de facto um encurtar de prazo, mas hoje em dia com as tecnologias de informação não me parece que isso constitua um aumento significativo da burocracia.
O tema é alivio fiscal – que aqui é muito só do lado das famílias. Há agravamento nos impostos indiretos, na parte das viaturas, há atualizações no tabaco, que sobe 10% (e que do ponto de vista sanitário se deve aplaudir), mas há agravamentos que compensam o alívio fiscal que está a ser feito na revisão dos escalões do IRS. Mas não há alívio fiscal generalizado. Vamos continuar a ter uma carga fiscal global que andará à volta dos 35% do PIB.
JE: Quais os pontos mais relevantes desta proposta sobre o investimento público e sobre a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)?
LM: O OE contempla medidas de investimento público na casa dos 3 mil milhões de euros que vêm do PRR. O grande desafio que o governo vai ter passa pela capacidade de executar esse investimento. Porque a máquina do Estado vai ter que estar muito bem oleada. Temos de fazer investimento seletivo, criterioso, em todas as áreas que o PRR contempla, desde a transformação digital dos vários organismos do Estado à parte da inovação.
Há todo um conjunto de medidas que o Estado tem de fazer e de forma rápida e seletiva. Esse vai ser o desafio, porque rapidez, seletividade e rigor nem sempre acontecem quando o Estado tem que intervir.
JE: O Governo deverá acabar com o pagamento especial por conta (PEC) do IRC; e prolongar durante mais seis meses o incentivo fiscal ao investimento, que vigorou até junho deste ano. Vai passar a chamar-se incentivo fiscal à recuperação (IFR) – que mudanças traz esta medida?
LM: Esta medida acaba por ter um nome diferente daquela que tinha a medida que vigorou no segundo semestre de 2020 e no primeiro semestre de 2021. Uma das críticas que mais se faz a esta medida é que só contemplava os investimentos feitos a seis meses e não a um ano.
A grande oscilação que esta medida tem é, por exemplo, nas percentagens. Enquanto que, durante 2021, o CFEI-II tinha uma percentagem de ponderação para efeitos de incentivo fiscal de 20%, este tem apenas 10% e tem uma nuance: estes 10% podem ser sempre dedutíveis. A base máxima é até 5 milhões de euros de investimento e uma taxa incremental até 25%, mas aí temos que olhar para a média dos investimentos que foram feitos nos ultimos três anos, e só a parte que exceder essa média é que tem direito à aplicação da tal taxa incremental.
Portanto, vai ser difícil porque houve anos em que as empresas suspenderam o investimento (2020 e 2021, com a pandemia). A tecnicidade da aplicação destes incentivos é que normalmente têm a dificuldade da sua aplicação prática. Uma das grandes questões deste incentivo é que proíbe as empresas que queiram dele beneficiar de poder distribuir dividendos durante três anos, além do impedimento do despedimento de pessoas do quadro da empresa.
A questão de não distribuir dividendos parece-me altamente lesiva e contrária até a uma economia normal de mercado. Percebo a regra de não poder despedir pessoas, mas não poder distribuir dividendos parece-me altamente lesivo daquilo que são os interesses normais de um acionista que pretende investir.
Ricardo Cunha, leitor: “Uma das medidas do OE2022 é a eliminação do pagamento especial por conta (PEC) para as empresas, tudo certo. Qual o sentido a existência do PEC ao longo destes anos todos? Não é intenção do governo andar à frente com o dinheiro das empresas? Faz algum sentido?”
LM: O PEC quando foi instituído tinha na sua génese e muita gente até o apelidava de “coleta mínima”. As grandes empresas, regra geral, já não pagavam PEC porque este era um instrumento de tributação forfetária criado pelo governo, que baseava o seu cálculo no volume de faturação. Aplicava-se uma percentagem a esse volume de faturação e havia um limite mínimo e máximo, ao qual se deduziam os pagamentos por conta (porque as empresas já os faziam) baseados no imposto que pagavam no ano anterior.
O que acontece é que as micro e pequenas empresas não pagavam imposto, ou pagavam muito pouco. Era uma forma de todos os contribuintes, aqui pessoas coletivas, contribuírem para o sistema.
À medida que as coisas foram evoluindo, e que as empresas foram começando a acabar com a economia informal, e até com a criação de mecanismos de comunicação de faturação, o governo chegou à conclusão que não havia sentido em manter o PEC, tanto mais que, desde 2019, o PEC já não era aplicável, ou era dispensável, para as empresas que cumprissem com as suas obrigações fiscais.
Esta medida de acabar com o PEC acaba por ser uma concretização legislativa daquilo que, na prática, já existia.
O governo estima, aliás, que o impacto concreto desta medida é de cerca de 10 milhões de euros (não é significativo no global do OE). É uma medida mais emblemática, de caráter político, quando na realidade e em termos substantivos isso não tem qualquer impacto.
Respondendo ao leitor, o PEC hoje em dia já não faz sentido e por isso vai-se acabar com ele, mas continua a existir o pagamento por conta – o Estado continua a querer que as empresas que pagam impostos vão adiantando em três prestações (julho, setembro e dezembro) parte do imposto que liquidavam no ano anterior.
JE: Este OE é um documento decisivo para a retoma da atividade económica no pós-pandemia. Já no ano passado quando aqui conversámos sobre o OE para 2021, ficou a ideia de que as empresas estavam desiludidas com a escassez de medidas de apoio direto e indireto. A seu ver, que medidas ficam por concretizar neste OE e que fariam a diferença para o tecido empresarial?
LM: Além das medidas adicionais, acho que este OE tem uma característica diferente do OE2021. Há aqui fatores que o governo está a considerar. Por um lado, o PRR, que vai induzir mais liquidez, direta ou indiretamente, para que as empresas se consigam reestruturar, reinventar e redimensionar. Por outro lado, a retoma da atividade económica. O governo estima (talvez de forma otimista), que vamos ter um crescimento económico, coisa que não tivemos em 2020 e que, em 2021, devemos ter pouco mais de 4%.
Mas são dois anos de crescimento económico. Há aqui um alavancar da atividade, uma injeção de liquidez na economia e o governo entende que toda esta conjugação de fatores poderá ser suficiente para que o tecido empresarial ganhe uma nova esperança e uma nova dinâmica.
JE: Na sua opinião, é?
LM: Pode não ser, mas acho que o governo devia ter dado sinais na área fiscal. Vejamos o que Espanha fez ao nível do IRC. Portugal tem limites temporais. Temos vários regimes que herdámos do tempo da troika que, supostamente, eram excecionais e temporários e que ficaram permanentes, como é o caso da derrama estadual, das taxas de solidariedade, etc.
Temos ainda resquícios troikianos que se mantêm a penalizar, por um lado, os cidadãos e, por outro, as empresas. Temos o mecanismo das tributações autónomas que é impar na Europa – não ha outro país que tenha algo parecido. E faltam-nos medidas de maior incentivo fiscal ao investimento, por exemplo recompensas pela via fiscal para as empresas que mantiveram postos de trabalho ou que até criaram emprego durante a pandemia.
JE: E no lado oposto, empresas que deixaram sair trabalhadores?
LM: Isso já o OE2021 contempla uma medida que é: quem diminuiu o seu quadro de pessoal por referência a outubro de 2020, em 2021 pode não usufruir de benefícios fiscais. Há um conjunto de benefícios fiscais que [essas empresas] ficam impossibilitadas de urilizar em 2021 se tiverem feito isso.
O que faltou foi o reverso da medalha: quem manteve e até cresceu, porque é que não tem uma benesse fiscal?
Há áreas que podiam ter sido contempladas, e nós no survey da EY mostramos algumas áreas nesse contexto. Temos até escrito sobre o que poderia ser mudado e contemplado no IRC.
Acho que faltou dar um sinal de alguma esperança e de algum alento ao tecido empresarial. O IFR, tal como foi criado, é manifestamente insuficiente, não só pela dimensão, até pela temporalidade – apenas seis meses e nem sequer tem o ano todo de 2022 para poder ser contemplado.
Reveja este webinar na íntegra aqui.
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