Como todos ou quase todos os portugueses com uma conta de email, recebi uma bonita missiva da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) ameaçando-me com a possibilidade de vir a ser punido com pesadas multas se não fizesse o que o Estado exige de mim. Desta vez, a minha obrigação cívica não era para pagar dívidas que não devo (um ritual quase anual), mas sim “cortar árvores” e “limpar o mato”, “antes que seja tarde”.

“Em colaboração com o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural”, a “comunicação” da AT avisa os portugueses que a receberam de que “é obrigatório limpar o mato e cortar árvores” até “50 metros à volta das casas, armazéns, oficinas, fábricas ou estaleiros; 100 metros nos terrenos à volta das aldeias, parques de campismo, parques industriais, plataformas de logística e aterros sanitários”, bem como “limpar as copas das árvores 4 metros acima do solo e mantê-las afastadas pelo menos 4 metros umas das outras”, e “cortar todas as árvores e arbustos a menos de 5 metros das casas e impedir que os ramos cresçam sobre o telhado”.

Quem “não o fizer até 15 de março” poderá “ser sujeito a processo de contraordenação”, com “as coimas” a poderem “variar entre €140 e €5 mil, no caso de pessoa singular, e de €1.500 a €60 mil, no caso de pessoas coletivas”. “E este ano”, termina a AT, naquele tom com que nos filmes um pelintra vagamente mafioso diz ao pobre trabalhador honesto que pretende extorquir que “os acidentes acontecem”, essas multas “são a dobrar”.

O ridículo da coisa salta à vista de qualquer um. Ter gente que vive num terceiro andar de um prédio do Porto ou num oitavo de um edifício nos subúrbios de Lisboa, cujas árvores mais próximas de si são as do jardim municipal dois ou três quarteiros abaixo de si ou as que as televisões lhe mostram, a receber um texto que lhe imputava a mesma obrigação que um detentor de um terreno algures na Beira terá de se prevenir para os riscos inerentes a um incêndio florestal, é de um absurdo de que só o Estado português e as cabeças que o governam se lembrariam.

O resultado, para além da chacota geral dos mais bem informados, foi o pânico dos menos habituados a estas andanças, que terão ficado sem saber o que fazer e com medo de serem multados. Para borrar ainda mais a pintura, há quem avise que as ordens dadas pela AT podem ser contraproducentes, ao “fomentarem”, dizem, “o crescimento de combustível”.

Acresce que o próprio envio do já célebre email será ilegal, ao violar as regras de protecção de dados a que o Estado português está (teoricamente) obrigado. Dado que os contribuintes que disponibilizaram o seu endereço de email à AT o fizeram para que esta os pudesse contactar sobre as questões que dizem respeito às suas funções, usar a extensa base de dados de uma instituição estatal que detém cada vez mais informação acerca de todos nós e que frequentemente age para lá dos limites da lei para fins que não aqueles que justificam a cedência desses dados, não só constitui uma violação da privacidade de quem recebeu esse email, como demonstra a forma irresponsável e corriqueira como a AT usa e abusa do seu cada vez mais vasto poder.

Mas nada disto é o mais grave de toda esta tropelia. Como não sei quem dizia não sei onde (creio que o João Miguel Tavares no Governo Sombra, mas não me recordo bem), a constante insistência das autoridades portuguesas na necessidade dos cidadãos privados procederem à limpeza dos terrenos tem como único propósito garantir que se crie a ideia de que o Governo está muito activo a fazer algo para impedir a repetição das tragédias do ano passado, e que se possa transferir para as mãos dos cidadãos as responsabilidades do que vier a suceder se essa repetição não for evitada.

Ou seja, com este email ameaçador da AT, o Estado português age de forma ridícula, contraproducente e ilegal, só para os seus chefes políticos poderem fazer propaganda. Não se trata de nada que espante neste (ou em qualquer outro) governo. Mas parece que a propaganda é como as multas: “este ano” é “a dobrar”.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.