Marielle foi assassinada. Marielle era mulher, negra, lésbica, pobre oriunda de uma favela. E era também activista inconformada, socióloga, vereadora municipal em luta contra a certeza da discriminação, da segregação e da violência que se abate sobre cada uma daquelas condições, maneiras de ser. Marielle era isto tudo, até ela própria – jackpot de todas as condições vitimadoras, mas que as vencia em denúncia – ser abatida a sangue frio.

Marielle foi assassinada, mas todos os que o seu nome representa e, mais enfaticamente, todas as que o seu nome representa estão a ser assassinadas. Mais de 60 mil cidadãos do Brasil por ano. Uma cidade média portuguesa exterminada a tiro de bala ou a gume de faca, a cada ano que passa. Sob um critério estatisticamente étnico – em cada dez vítimas de violência mortal sete são negros, quase sempre jovens adultos, crianças lançadas para a vida como para uma vala onde a terminam ao fim de poucos anos.

A maioria das guerras do mundo nas últimas décadas não matou tanto e muito poucas tão seletivamente. Quando é o caso fala-se de guerra civil e de genocídio. Nas mulheres a desproporção racial repete-se – perto de dois terços das mulheres assassinadas no Brasil são negras. Não esquecendo que antes de assassinadas, todas, brancas, pardas, indígenas ou negras, o padrão bem identificado é o de uma biografia de outras violências: o espancamento, a coacção, o abuso sexual, a intimidação psicológica.

Depois, há a violência motivada pelo ódio contra pessoas LGBT. Só de 2016 para 2017, os assassinatos com esta motivação cresceram 30% no Brasil. É na Globo e não em qualquer agência demasiado empenhada que se lê— “a cada 19 horas um LGBT é assassinado ou se suicida vítima da ‘LGBTfobia’, o que faz do Brasil o campeão mundial desse tipo de crime.”

E, finalmente, há a violência perpetrada pelas próprias forças policiais. Em todo o país, mata-se cada vez mais para roubar, mas mata-se ainda mais em intervenções policiais. A Polícia Militar, como aquele 41.º Batalhão que entra com tudo nas favelas da zona norte do Rio (Complexo da Maré, Complexo do Alemão), e que Marielle denunciava com palavras e corpo presente. Em 2015, cinco jovens negros, de regresso a casa depois de terem estado a comemorar o primeiro emprego de um deles como “menor-aprendiz” num supermercado, foram interceptados por polícias do 41.º e o seu carro foi alvejado com 111 tiros. Nenhum deles estava armado. Nenhum dos polícias foi até hoje punido.

Como pode isto acontecer no Brasil? Como pode um país que subscreve direitos fundamentais garantidos na letra da sua Constituição admitir a monstruosidade destes dados, que as suas próprias instituições coligem e que são genericamente conhecidos de todos? Como se insensibilizou um país a este ponto?

Por complexas que sejam as razões, o quadro essencial não pode ser afastado da vista. Apesar de mais timidamente do que se esperaria, o Brasil tem conseguido melhorar indicadores socioeconómicos. Mas persiste e aprofunda-se agora mesmo (ainda em Janeiro a Oxfam Brasil o disse) uma desigualdade brutal, que é também racial e de género. As meninas negras e pobres,  pobres porque são negras, abatidas acidentalmente em trocas de tiros diante dos seus barracos na favela, que não chegam bem a ser gente que suscite algum tipo de empatia. Ou os meninos sumariamente executados pela polícia militar, em vez de detidos e presentes a juiz, tratados com o desprezo de quem não é realmente gente.

A única hipótese que têm de ser gente aqui é continuar a servir, a descer das rocinhas para o Leblon, a trabalhar por uma miséria que evita a fome, e logo voltar a subir a ladeira para deixar a noite ao luxo de umas dezenas de milhar de pessoas ricas como as dezenas de milhar mais ricas de uma Paris. Vale isto para o Rio, vale isto para São Paulo, vale isto, na proporção devida, por aí adiante para as grandes cidades do Brasil. Não é a droga, não é a corrupção, ambas muito mais consequência do que causa, mas a desigualdade naturalizada, e que não cede a nada, que está a zangar este país numa espiral de violência assassina.

Não sei se consigo escrever um texto à altura de tudo isto. Sou homem, branco, hetero, não sou pobre nem brasileiro. Não falo do lugar da vítima e o que digo não sofri na pele. Seria ofensivo da minha parte colocar-me em tal posição. Mas reivindico-me também representado por Marielle e digo presente junto com todas as mulheres que façam abaixo-assinados, todas as mulheres negras que se constituam sujeito de voz, todas as vítimas LGBT que exigem dignidade, todos os cidadãos, homens e mulheres, cada um como sente que consegue e deve exprimir-se. Todos, livremente. Só assim faz sentido.

Há uma geração Lula, de milhões de cidadãos que chegaram a ser classe média e a alcançar qualificação, que tem de assumir o Brasil contra o abraço letal da desigualdade e da violência. Nas universidades também, tão brancas, tão louras, tão viajadas. E é urgente que o façam, pois por cada Marielle assassinada, mais medo se instala e alastra, num declive que acabará por fazer com que as pessoas, a troco de segurança, abdiquem da democracia, da liberdade, do reconhecimento recíproco. De um Brasil também seu.

Marielle foi representante de todas as vulnerabilidades no Brasil e representou a coragem de as denunciar. Representou o Brasil social oprimido e que não está a conseguir libertar-se. Foi assassinada. É a vez desse Brasil se fazer representante de Marielle. Por ela, por todos. Pelo Brasil.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.