Se a Democracia é o menos mau de todos os males, quando nos referirmos a formas de governo e citando de maneira, mais ou menos livre, o que Churchill referiu em tempos, que papel tem o Direito na Democracia? Esta minha questão surge, uma vez mais, porque nos é difícil pensar a Democracia, no geral e idealmente, sem que pensemos em casos concretos. Na verdade, a expressão “judicialização da política” tem vindo tantas vezes à tona nas análises à vida política portuguesa que, quase obrigatoriamente, temos que reflectir sobre a questão, e isso, na minha opinião, é bom.
Se a separação dos poderes – judicial, legislativo e executivo – é premissa base para as democracias liberais de cariz ocidental, na prática, as fronteiras entre esses poderes não são assim tão bem delineadas já que as suas ligações existem: o ser humano é, por natureza, gregário. Enquanto ser social, o Homem tem também muitas identidades e pré-ideias sobre variadas realidades. Todavia, há, na forma ideal do um Estado democrático, essa contínua luta, quase contraditória, entre o dever ser e o que cada um pensa que é o Estado.
A separação e divisão de poderes dentro do Estado existe, ainda que imperfeitamente, para que sejam garantidos ao cidadão comum aqueles que foram denominados como os seus direitos fundamentais, ou seja e na prática, para que viva bem. Qualquer ameaça a esta separação de poderes, muitas vezes pautada por preferências pessoais e por juízos mais ou menos opacos existentes nos meios de comunicação social, deve ser recusada por todos nós, por princípio e sem clubismos, ainda que possa ser uma grande tentação.
Por norma, é muito fácil colocar os defensores de uma determinada situação de acordo com o seu posicionamento político. Veja-se, por exemplo, o caso do ex-primeiro-ministro Sócrates. Quem defendia que deveria ser tratado com rigor judicial era imediatamente visto como sendo, no mínimo, apoiante do Partido Socialista (PS), logo, necessariamente, de esquerda, e vice-versa; quem aceitava a sua culpabilidade era imediatamente visto como anti-PS e como sendo de direita.
Estes estereótipos sagram-se em outros exemplos. Para os apoiantes e os não apoiantes de uma investigação mais aprofundada e com potencial envolvimento do ex-primeiro-ministro Passos Coelho no caso da Tecnoforma aconteceu o mesmo, ou, num outro exemplo internacional – o caso de Lula, ex-presidente do Brasil. Este alinhamento imediato, em que se colocam pessoas que defendem uma ou outra posição, é nocivo para os processos democráticos em que todos participamos enquanto membros de uma sociedade.
É humano que façamos esses pré-juízos, mas não é menos humano tentar combater essas nossas pré-ideias sobre o que nos rodeia. Se a Justiça é cega, assim deverá ser a aplicação do Direito. Mas o “dever ser” tem muito que se lhe diga, e parece ser sempre mais confortável compartimentarmos as pessoas e as situações em categorias onde o certo está sempre do nosso lado ideológico e o errado não.
Perdoamos sempre um pouco mais os que pertencem às cores que nos agradam e menos os que são mais diferentes de nós. Mas, e até porque não somos todos juristas, e muito menos juízes – a maioria de nós desconhece os procedimentos legais e os processos em causa – e porque, recorrentemente, além de termos acesso a pouca informação, temos hoje, mais do que nunca, que lidar com informações erradas e tendenciais, talvez fosse boa ideia pensarmos que Estado e que Democracia estamos a defender com os nossos clubismos acirrados.
Se este é um jogo de espelhos, talvez o ideal seja fecharmos os olhos, como a Justiça, aos acusados e abrirmos os olhos aos factos e às provas com os respectivos enquadramentos processuais. Poderemos não o fazer, é certo, mas corremos sérios riscos de, no dia em que clamarmos por Democracia, Direitos e Justiça ser já tarde demais.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.