1. A recente crise diplomática entre a grande maioria dos Estados que outrora constituíram o ocidente e a Federação Russa teve uma consequência lateral que não deixa de ser curiosa: permitiu perceber e evidenciar, de forma clara, o realinhamento político de muitos Estados e de alguns dos seus líderes face a Moscovo e ao regime autoritário de Putin.
De um momento para o outro, Vladimir Putin foi transformado no herói dos governantes autoritários e despóticos deste mundo, sejam eles de esquerda ou de direita. Tanto estabelece entendimentos com o insano o presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, como apoia militarmente o ditador sírio Bashar al-Assad – que um dia ainda há-de vir a ser julgado na Haia por crimes contra a Humanidade por aquilo que tem feito ao seu próprio povo – ou é apoiado ou colhe as simpatias da direita e da extrema direita europeia mais radical.
Onde haja um vestígio de autoritarismo, de democracia musculada ou de ditadura mais ou menos declarada, lá estão as simpatias por Putin. Putin agradece e retribui. Putin e a Federação Russa que, recorde-se, têm hoje muito pouco, ou quase nada, a ver com a antiga União Soviética e a sua nomenclatura gerontocrática. É por isso que, entre nós, contam-se as vezes em que o “soviético” Partido Comunista Português “se atravessa” na defesa do novo homem-forte do Kremlin. Fá-lo, em situações contadas, apenas e só quando estão em causa valores ou posturas que relembram e recordam a antiga URSS.
No mais, que é a maioria das vezes, resguarda-se num enigmático e prudente silêncio. Percebe-se porquê. Putin foi formado no regime soviético mas não é um discípulo do poder soviético. É apenas um dos seus aprendizes. Verdadeiramente, é um russófilo autoritário, com tiques ditatoriais, empenhado na expansão do poder da antiga santa-mãe Rússia. O mais eficaz e o mais aplicado de todos eles, aproximando-se mais dos velhos czares russos do que dos gerontocráticos líderes soviéticos.
Do outro lado da barricada, surgem muitos dos que sempre se manifestaram contra o poder, a estratégia e os valores do socialismo de face real que ruiu com a implosão da URSS. Com uma diferença – infelizmente são, hoje, muito menos do que eram ou foram antes. Muitos dos que, outrora, estiveram do lado certo da barricada, mudaram hoje de lado e de trincheira. Deixaram-se encantar (ou comprar) pelas prebendas e pelas proclamações encantatórias do novo senhor do Kremlin. Cederam ao vil metal e deixaram-se encantar pelo canto autoritário.
Apesar de menos, todavia, continuam a ser os que estão (os que estamos) do lado certo da barricada e da história. O lado das democracias liberais, dos valores fundacionais da Europa e do Ocidente. O trabalho, árduo, que o ocidente tem pela frente será, portanto, o de refazer as alianças antigas, de reconquistar e chamar para o bom combate aqueles que já o travaram e que, por meras e egoísticas razões, se bandearam para o lado de lá, para o lado do autoritarismo e do despotismo. E não há tempo a perder para (re)começar a cerzir tais alianças euro-transatlânticas.
2. Na passada semana o tribunal de Schleswig decidiu libertar o foragido Carles Puigdemont, o ex-presidente da Generalitat da Catalunha, decidindo que o mesmo não pode ser extraditado para Espanha pelo crime de rebelião, porque a lei equivalente na Alemanha pressupõe o uso ou ameaça de força suficiente para contrariar a vontade das autoridades, de violência em síntese, o que no caso de Puigdemont não foi dado por provado.
Ao tomar esta medida o sistema judicial alemão – um dos mais competentes e rigorosos a nível europeu – infligiu uma pesada derrota ao aparelho político-judicial espanhol. A Espanha, de resto, tem lidado muito mal com a questão do mandado europeu de detenção, que já acionou por duas vezes contra Puigdemont e que, por outras tantas vezes, sucumbiu: primeiro na Bélgica, agora na Alemanha. Não é de estranhar. O mandado europeu de detenção não foi pensado para supostos crimes de natureza política, mas como um instrumento de luta contra o terrorismo transnacional.
Também aqui o Estado espanhol sofreu um revés de monta. Ao querer judicializar uma questão que tem forçosamente de ter uma solução política e não judicial, o poder político espanhol está a demitir-se das suas funções; mas está a deparar-se com ordens jurídicas europeias que lhe estão a dizer que a questão catalã é, essencialmente, uma questão política e é nesse plano que tem de ser resolvida. E a dizerem-lhe, também, que se o sistema judicial espanhol se presta a ser um instrumento do poder político de Madrid, os sistemas judiciais europeus não estão na disposição de se prestarem a esse papel.