Com a invasão da Ucrânia, subitamente a distorção na relação com o tempo a que a pandemia nos forçou deu lugar a uma distorção de sentido contrário. O confinamento e todos os constrangimentos determinados pela saúde pública obstinaram-nos no regresso à normalidade de antes. A distorção consistiu, precisamente, em não se conceber outra saída se não o regresso sem mudança ao “tempo do antes”, com o tempo do entretanto equacionado apenas como a variável flexível para alcançar o antes.

O “novo normal” de que tanto se falou ou foi transitório ou ficou como um rasto dessa obstinação – o velho normal servido por outros meios. Nisto, perdeu-se a oportunidade de colocar as perguntas fundamentais sobre como podemos viver juntos e, em particular, sobre como vamos acomodar respostas urgentes que nos libertem do extrativismo dos recursos, do consumismo, da desigualdade, do crescimento como fuga insustentável disso tudo, cada vez mais acelerada, cada vez menos sustentável, em direcção ao abismo climático.

Agora, e apesar de todas as outras ameaças globais, a invasão brutal da Ucrânia veio para impor uma outra distorção da relação com o tempo: força a passagem abrupta para um tempo do depois, da ruptura irreversível com o antes que na pandemia se obstinava. Cada atrocidade na Ucrânia é uma ferida incicatrizável, certeza de que o tempo que se segue é tempo do depois, irremediavelmente sem retorno.

Aliás, se o poderio soviético pode ter um efeito de aura nostálgica sobre o Kremlin, uma espécie de sebastianismo à russa, no fundamental o que move o plutocrata Putin é muito menos reverter o fim da URSS do que acabar com a ordem do “antes”.

Muitos dirão que é preciso que o terror e o horror não bloqueiem a reflexão que urge fazer sobre o que está a acontecer. Mas, por recomendável que o seja em condições normais, no presente conflito pensar apesar do terror e do horror desvia da atenção o decisivo. É preciso pensá-los como parte crucial do que está a acontecer. A destruição das cidades ucranianas tem o efeito de terror sobre as populações, compelidas a abandonar as suas casas. E tem o efeito de horror sobre todos nós, que nos compele também, imperativamente dirigidos pelos acontecimentos e por quem os determina.

Não podemos deixar de corresponder ao imperativo moral, mas não podemos deixar de compreender que estamos num registo de acção constrangida, que nos dirige os destinos muito mais do que o inverso.

O “mas” obscenamente complacente com a invasão não pode ofuscar este outro: o caminho imperativo para o nosso belicismo não é menos induzido por Putin do que, por reacção, desejado por Zelensky. Muito dialeticamente, o que convém a Putin é que o odiemos e nos polarizemos contra ele e assim entremos no tempo do depois.

Outono e Inverno

Postas as coisas assim, Putin está a ganhar a guerra independentemente da resolução da guerra na Ucrânia.

Os líderes nacionalistas, mais ou menos xenófobos, iliberais, na Europa ou no Sul, sairão reforçados nos seus territórios de poder, tenham muita, pouca ou nenhuma legitimação democrática. Mesmo que reneguem e acusem Putin, confirmam-no no essencial. Mesmo que não o reneguem e o acusem, ganham força.

Preparemo-nos para um novo tempo do depois que não é melhor do que o tempo de antes. É como pedir ao diabo que escolha entre dois apocalipses.

Um episódio da série “Love, Death & Robots” dá-nos, nas palavras de uns robots que nos teriam sobrevivido, a retrospectiva pós-apocalíptica exacta: “De facto, foi a sua própria húbris [dos humanos] que acabou com o seu reino, foi a crença deles de que eram o pináculo da criação que envenenou a água, e os levou a matar a terra e a asfixiar o céu. No fim, não foi necessário nenhum inverno nuclear, apenas o longo e despreocupado outono da sua própria auto-estima.”

Não nos podemos conformar à alternativa entre estes dois tempos apocalípticos, um lento outro rápido, como também, e de forma muito paralela, é enganosa a alternativa tantas vezes apontada entre o discurso de paz dos liberais, na verdade declarada hipocritamente apenas na certeza de um pano de fundo de violência e opressão sistémicas – a violência de grau zero de que falava Slavoj Žižek –, e a violência pela paz, mas só muito ilusoriamente pacificadora, dos revolucionários. Pôr a descoberto a violência subjacente ao pacifismo liberal subverte-a, mas não a reverte.

O fascínio por anjos vingadores, violências divinas, governos revolucionários, heróis e mártires, a própria estetização da violência, com muito cinema pelo meio, é parte do problema e não da solução. A estetizar politicamente alguma coisa que seja não o poder, mas a relação, com os outros, as coisas, o planeta, tudo o que perfaz o mundo concreto aí à volta.

Ironicamente, “O tempo do depois” é também o título de um pequeno magnífico livro de Jacques Rancière sobre o cinema de Béla Tarr, a assinalar toda uma outra ideia, de um tempo depois das promessas falhadas, sensível à repetição dos gestos que nos aproxima, na condição do fundo por que existimos, dos outros seres que dividem connosco o mundo. É um tempo comum. Na vulnerabilidade, quase nada nos distingue dos animais que nos acompanham no destino.

Pós-moralidade

Hipocrisia é uma palavra hipócrita para dizer o que está a acontecer-nos. A qualificação de hipocrisia fica conscientemente aquém do que tem de nomear e julgar, que é precisamente o que a sua etimologia diz significar. E, no entanto, ela e o seu reverso, a “hipercrisia”, sempre a pôr mais uns furos de exigência para consigo mesmo, mas para que seja percepcionada e logo retribuída, com o travo de hipocrisia que a acompanha, são a ordem política do discurso que vigora.

Diante de um pacote duríssimo de sanções e que considerou equivalente a uma declaração de guerra, a Rússia continua a vender o gás e o petróleo àqueles que diz que é como lhe declarassem guerra. Será simplesmente o “business as usual”? Ou a guerra continuar a política, e os interesses que esta negoceia, por outros meios? A lição de Clausewitz aponta para a continuidade que persiste sob a mais aparente descontinuidade, mas esse realismo também não diz tudo.

A hipocrisia deixou de ser instrumental, máscara para ganhar vantagens, e passou a ser um statement. Deliberada e assumida, tornou-se sinal de força e não de fraqueza. Para a ordem emergente do tempo do depois, é assim que se atesta o poder. Mede-se e avalia-se no poder de ser hipócrita, impondo a hipocrisia aos outros sem pagar por isso.

Se a pós-verdade designa a condição ou circunstância em que a diferença entre verdade e mentira se tornou irrelevante, libertando o uso puramente instrumental de ambas, sem qualquer necessidade da falsidade ter de se disfarçar, então, de forma análoga, devemos falar de pós-moralidade para indicar a condição em que a evocação da moral é feita sem qualquer escrúpulo e de forma tal que se torna irrelevante a diferença face ao imoral. Por exemplo, a contradição chocante entre a acção bélica que se justifica contra a alegada nazificação de um território e que, contudo, se permite o terror civil.

Noutra escala, o cinismo moral de uma parte que estabeleceu no passado sanções contra um invasor, mas que, em plena vigência das sanções, vende armamento ao invasor. Ou mesmo com desprezo por qualquer escala quando é o próprio Putin que faz a comparação que o devia ofender – entre o alegado cancelamento da cultura russa e o alegado cancelamento da escritora J.K. Rowling.

Como é possível comparar a partir de tal desproporção? A insensibilidade das distinções conceptuais à grandeza da escala, da qualificação à quantificação, aparenta um conflito insano com o mais elementar senso comum moral. Mas, até que ponto este divórcio da qualidade à escala não varreu muitas mais consciências intelectuais, até no debate político português?

No entanto, se se trata de um padrão de interpretação e de tomada de posição, devemos esperar uma racionalidade subjacente. É muito menos insanidade, ou má-fé, do que polarização face à forma de racionalidade diametralmente oposta que predomina no contexto global regido pelo tempo do antes. A insensibilidade da quantificação à qualificação é um dos traços mais distintivos da opressão em consciências liberais que normalizam a desigualdade, por extrema que seja, apesar de hipersensíveis à discriminação.

O conflito ideológico configurou-se também como um conflito entre dois “mindset” de indiferença moral que se contrapõem, pretensamente um negação do outro, na verdade, um apenas o negativo do outro, versão hipócrita da dialéctica, que apenas nega instrumentalmente para polarizar, em vez de polarizar para negar. Mas não se poderia esperar outra coisa de duas ordens de plutocracia que se medem, se invejam e se testam o poder, para isso deitando a mão a valores morais, à verdade e às vidas de outros sem pejo.

Diante destas equivalências, a alternativa não está no não-alinhamento que se descompromete da acção descomprometendo-se com todas as partes. Contra o alinhamento apocalíptico, o caminho tem de ser o de um realinhamento não-apocalíptico que reivindique a luta contra as desigualdades e as discriminações, a catástrofe ecológica, a pós-moralidade e a pós-verdade. O primeiro sinal de paz é a franqueza.

Escolher a comparência

Faço parte de uma geração que, quando ganhava consciência do mundo que pisava, não precisou de acreditar em Deus-todo-poderoso para ter uma percepção real do que é o poder absoluto e dele sentir medo.

No início dos anos 80, em plena Guerra Fria, o medo era objetivamente o do ataque nuclear. E chegou até mim na forma de filmes medianíssimos, mas que ilustravam a sequência de acontecimentos que tornava possível, realista mesmo, o desenlace inconcebível. Foi o “The Day After” em 83, que vi no antigo cinema Roma, foi o “Threads” em 84, que havia de passar na televisão portuguesa, foi a canção do Sting em 85, que ele tornou a gravar há algumas semanas. Com 11, 12, 13 anos, deixou logo de ser necessário procurar o poder absoluto em outra parte que não os humanos.

Na ordem das impressões de criança, não faltou a experiência da passagem mais ruidosa de um avião e a contagem angustiada de meia dúzia de segundos, a ver se nada acontecia, como o trovão depois do relâmpago, mas pela ordem inversa. Um disparate, ou talvez não. É o que é. Desculpem a incursão biográfica que só faço porque creio partilhada por muitos. E é a conversar que nos entendemos.

Entre o medo e a angústia há uma diferença para aqui relevante. O primeiro refere-se a algo mais ou menos objetivo e que nos pode atingir – a bomba, a má morte, súbita e violenta, até o que o desespero nos levará a fazer em certas circunstâncias. Entre os piores medos, se não o pior, está o de nós próprios.

Mas, no medo, somos os pacientes, mesmo se da nossa própria acção. E agimos naturalmente para o evitar. Na angústia, pelo contrário, somos os sujeitos. Para Sartre e, antes dele, para Kierkegaard, a experiência de angústia significava a consciência da liberdade, de que a possibilidade de nos lançarmos no precipício é nossa e a responsabilidade por o não fazermos é também nossa, sem desculpas. O medo evita-se, a angústia enfrenta-se. É na angústia que justificamos as escolhas. Tem de ser possível imaginar um outro tempo.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.