“Não existe competição onde há desigualdade de oportunidades, mas sim covardia.“ — Ernest Hemingway
(Escrevo entre o 25 de Abril e o 1 de Maio, não deixando de achar que as comemorações de ambos se tornaram numa mera rotina e que os valores que lhes subjazem são esquecidos no dia imediatamente seguinte. Entre os ditos valores, está a liberdade, tantas vezes apregoada quanto esquecida. E, dizendo-nos livres, a verdade é que nunca estivemos tão condicionados. Pelas visões parciais que nos dão a conhecer, enquanto escondem outras. Pelo silenciamento daqueles que não alinham no pensamento maioritário. Por campanhas de ódio, muitas vezes movidas nas famosas redes sociais, cujo único objectivo é tolher quem não está alinhado. Liberdade é, também, deixar alguém falar mesmo quando se discorda. Principalmente, quando se discorda.)
Vivemos Tempos inevitavelmente difíceis, não apenas por causa do rescaldo da Covid -19, como da guerra. Não alinho, portanto, no discurso que tenta encontrar alguma pseudo-justificação para um país ter invadido outro e andar a encher valas comuns de civis. Interessa-me menos o invocado passado negro de Zelensky do que as atitudes actuais de Putin, cujos antecedentes não permitem antever que pudesse ser melhor do que é. A guerra está aí e os que ainda não perceberam que Putin não se bastará por ali não percebem nada da natureza humana. Putin já deu demasiadas mostras de não ser minimamente confiável para que alguém possa, de algum modo, tentar atenuar a gravidade dos seus comportamentos. O que se espanta não é a realidade paralela criada mas a impassividade de muitos perante as atrocidades, numa cultura do medo que nunca salvou ninguém mas enterra muita gente.
A este propósito e entre nós, rebentou o escândalo do comportamento de alguns docentes da que foi a minha Faculdade. Até este ano, seria eventualmente o segredo de polichinelo melhor guardado porque todos sabiam e ninguém falava. Os tentáculos da Faculdade estendem-se muito para além do seu edifício e todos os que lá andámos sabemos disso. Por seu turno, uma certa cultura do temor que ali se vivia era apta a gerar uma sensação de normalidade quanto ao que nunca deveria ser consentido. Talvez isso explique o muro de silêncio que sempre houve à volta da teia de interesses, muitas vezes quase dinásticos, da forma como alunos e docentes se relacionavam e do que ali entendia por sucesso pedagógico.
Quando fiz a prova específica de acesso, já nas suas instalações, fui surpreendida por um assistente que, durante toda a duração da prova, me fez perguntas insistentes sobre a morte da minha mãe. Só mais tarde percebi que as mesmas se destinavam a desestabilizar-me, no que, aliás, tiveram relativo sucesso. Depois, no primeiro ano, circularam uns apontamentos para uma das cadeiras que foram elaborados com erros propositados para que os incautos tivessem um mau resultado, como, aliás, sucedeu. Foi uma breve apresentação a um mundo com regras diferentes das que eu conhecia até então.
Contudo, tenho idênticas (ou até mais fortes) memórias de grande camaradagem, de verdadeira amizade e de docentes que, mesmo não gostando de familiares meus e discordando de respostas minhas, procuravam ser justos e imparciais e tinham notáveis qualidades pedagógicas.
Mais de vinte anos após a minha licenciatura e com o distanciamento que esses anos me trazem, consigo dizer que a anteriormente designada como “FDL” tem docentes de excelência e terá outros que, claramente, se aproveitam agora, como se aproveitavam há vinte anos, da sua posição de superioridade. Uns visando obter benefícios sexuais, outros pretendendo apenas construir uma imagem de exigência para, com isso, galgarem na escada hierárquica. Aos primeiros, devo-lhes quase tudo o que sei hoje. Aos segundos, devo-lhes a memória do que não tolerar.
É um facto que, pelo menos na minha altura e em época de exames orais, era rara a sala de aula da qual não saísse algum aluno em lágrimas, perante uma humilhação pública. Por outro lado, em determinadas cadeiras havia alunos que choravam de felicidade perante um dez na pauta porque rapidamente aprendemos que um “oito” não era uma nota má (embora fosse uma reprovação).. E, por ironia, tais actos partiam muito mais dos mais recentes docentes do que dos catedráticos. Também é verdade que havia docentes (e, já agora, discentes) que se insinuavam, facto que era comentado, sem que daí existissem consequências. Lembro-me perfeitamente que um dos casos mais patológicos, hoje sócio de uma sociedade de advogados com o seu nome, levou-me a fazer formalmente queixa do mesmo, enquanto membro da Direcção da Associação Académica, obtendo como significativa resposta da parte do então regente: Então, e como é que pretende fazer Direito Comercial? Ironia das ironias, fi-lo naquele mesmo ano e ainda fui fazer melhoria, perante o assistente denunciado.
O que foi trazido a lume sobre a Faculdade de Direito é o pior que ela tem, devendo-se dizer também que idênticas situações acontecem noutras instituições e que, para além dos ditos assediadores, existem muito bons professores na primeira. Por outro lado, não deixa de ser curioso verificar que algumas das vozes que hoje se levantam contra o dito assédio, fazem-no depois de se terem aproveitado do sistema, refira-se que igualmente assente em conveniências políticas e familiares, e de terem feito parte dele, quando não mesmo praticado os exactos actos que hoje denunciam.
Uma das derradeiras liberdades é a possibilidade de termos memória, mesmo quando os tempos são de caos. Como disse Nietzche, “é preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela dançante”. Que este caos, cuja existência tem décadas, sirva para que se aproveite o que de muito bom a faculdade tem mas para expelir o que nunca deveria ter ocorrido, quanto mais perpetuado durante décadas. Nunca reneguei a minha Faculdade mas nunca a pude aplaudir sem reservas. É o que espero passar a conseguir fazer doravante, embora deva reconhecer que os sinais, sendo prometedores, são ainda ténues.