Europa, velho continente, acreditou rejuvenescer com a sua nova forma, adquirida com a queda do Muro de Berlim e com o surgimento de novos países a Leste, fruto do desmembramento de países como a União Soviética ou a Jugoslávia ou a separação em diferentes estados como é o caso da Checoslováquia.

Na verdade, estes estados ainda recentes vão afinando os seus nomes oficiais como, por exemplo, a Macedónia, que é agora Macedónia do Norte. É neste contexto que ressurge a República Federal Alemã, então, reunificada e abrindo porta a que a União Europeia começasse a integrar, também, o lado oriental na Europa.

Surgia uma ideia de paz e de bem-estar que seria alargada a todo o continente, agora com uma relação mais próxima com a Federação Russa que sofria ainda as agonias da recriação de um Estado. No entanto, a guerra na então Jugoslávia ensombrava a esperança de uma Europa construída em paz. Estava às portas da União Europeia e o seu desfecho era imprevisível.

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, no acrónimo inglês) acabou por se envolver no conflito e só anos mais tarde, depois de muitas mortes e sofrimento, mas com a contenção do conflito àquela área geográfica específica, se voltou a ter paz no continente europeu e às portas da União Europeia.

Contudo, outros conflitos viriam a desafiar a solidez do entendimento intraeuropeu acerca de temas sensíveis como os refugiados de guerra e os migrantes que tentam escapar à pobreza extrema. A Líbia e a Síria constituem exemplos de duas guerras às portas da Europa que tiveram impacto direto nos fluxos migratórios para a Europa e que ensombraram de novo a União Europeia com a guerra. Mais recentemente, esta sensação volta-se a repetir, agora numa maior dimensão, com a guerra na Ucrânia.

Centralidade questionada

Deste modo, se a paz e a estabilidade, mesmo que com um Brexit pelo meio, se instalou no seio da União Europeia, esta não quer dizer que o mundo não estaria em mudança rápida e que também o papel desta organização internacional regional estaria confrontado com novos desafios.

A globalidade do papel da União Europeia é questionada com o surgimento de novos atores, patente, por exemplo, em novos fóruns internacionais de encontro entre estados como os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que, afinal, representam países da América, da Ásia e da África. Contudo, a Europa continua a ser uma referência internacional para a vida em paz e para o bem-estar, acolhendo os desafios como as alterações climáticas e colocando-se na frente ao seu combate, nomeadamente, defendendo a transição energética, mesmo quando contrariando os seus aliados, como o caso dos Estados Unidos, menos sensíveis a estas questões.

Entre um passado de centralidade no mundo e os desafios do presente, a Europa sofreu várias modificações nos séculos XX e XXI e essa dinâmica de mudança permanece. O fim da Guerra Fria e a ausência da bipolaridade trouxeram uma nova realidade e novos formatos de fazer diplomacia, tanto ao nível multilateral como bilateral. No meio destas transformações, também surgiram novas lideranças políticas e diferentes anseios por parte das populações europeias.

Uma liderança, reflexo de uma outra Europa

Saiu recentemente a tradução da biografia de Angela Merkel, escrito por Ursula Weidenfeld e editada pelo Casa das Letras. Neste livro, encontramos uma biografia política da antiga chanceler alemã, mas também a descrição do mundo político alemão e europeu, que reflete o impacto da reorganização da Europa e a gestão das expetativas das populações de Leste.

A biografia espelha as adversidades enfrentadas por Merkel para se afirmar, enquanto mulher e como pessoa originária da Alemanha de Leste. Mas vai mais longe, expondo as conquistas recentes europeias que aos olhos atuais parecem ter fundas raízes, mas que acontecem já na derradeira década do século XX.

Entre estas questões, as de género, aproveitando que Merkel passou por esta pasta, ou as relacionadas com o clima, por onde a chanceler também passou, demonstrando a relativa novidade destas conquistas. Igualmente, mostram como a Alemanha unificada foi um processo árduo, lento e preenchido por vicissitudes, devido à unificação do direito, mas também de conceções de vida diferentes.

De todas as formas, Merkel e mais um punhado de políticos, oriundos da Alemanha de Leste e que conquistaram o seu lugar na política alemã, são descritos como a exceção à tendência geral. Comummente, a população da Alemanha de Leste, apesar de rececionar com entusiasmo a mudança de sistema político e económico, cedo percebeu que enfrentava uma série de limitações na convergência de instituições e formas de organização. Essas limitações e algum ressentimento parecem ter permanecido e nem o legado de Merkel que, inúmeras vezes, tentou fazer convergir os anseios e necessidades dos dois antigos lados do muro, os eliminaram. É, ainda, na Alemanha de Leste que se encontram as zonas mais empobrecidas da Alemanha e também que agora se afirmam as maiores simpatias para com as ideologias nacionalistas.

Entre a política interna e externa

Merkel tentou promover a homogeneização da Alemanha, mas sem expressar demasiado autoritarismo internamente. Aliás, fica conhecida pelas suas posições moderadas, pouco extremadas e, sobretudo, baseadas em cálculo político, o que alimentou a sua carreira. Em vez de assumir posições, fazia as propostas, deixava que os outros se atravessassem ou mesmo votassem as medidas perante as quais ela própria se absteria.

Assim, surpreendeu muitos quando manteve a sua posição de acolhimento aos refugiados e se mostrou firme, o que de certa forma contrastava com a sua posição de deixar que alguns dos seus ministros confrontassem os países do sul da Europa, aquando da intervenção da troika nestes estados.

Contudo, isto não aconteceu porque Angela Merkel não tivesse interesse na cena internacional ou não se envolvesse na política externa do seu país e da União Europeia de forma profunda.

Angela Merkel foi a dirigente política europeia que, de forma discreta, instou para a necessidade de uma política de defesa e segurança comum, centrada nos interesses dos estados-membro da União Europeia. Analisou e interpretou os líderes seus contemporâneos, dando muito espaço a líderes narcisos e fingindo de forma quase tímida não perceber que lhes estava a dar palco, enquanto prosseguia os seus esforços de negociação. Tentou até avançar com o Nord Stream 2, mesmo sabendo que isso incomodava o seu aliado norte-americano, mantendo-se centrada no interesse nacional alemão, tal como este era então visto.

Estendeu a sua prática de negociação nacional ao espectro internacional e o famoso comentário que faz sobre Vladimir Putin, alegando que ele vivia no seu próprio mundo, demonstra a sua capacidade analítica e interpretativa que, talvez, lhe restasse da sua carreira científica. Merkel compreendia esse mundo de onde vinha Putin, porque, em parte, ela também era parte desse mundo, apesar de alemã.

Merkel compreendia que a Europa Central e de Leste ainda se estava a construir, cimentando identidades, procurando espaços de influência e apoios. Ela, provavelmente melhor que ninguém, interpretou a mudança a que estavam sujeitos estes países e como a transformação dos mesmos, ansiada pelos seus povos, se mostrava incompleta.

Um dos aspetos mais relevantes da sua governação foi a exclusão perentória da extrema-direita de qualquer acordo e, também, o seu alerta para a subida dos nacionalismos de direita que já despontavam em vários países europeus, mas que já estavam representados no poder em países como a Hungria ou a Polónia.

Merkel abandona o poder pelo seu pé, consciente do que esperava a Europa. Sabia que a realidade se desenhava em ciclos e que o próximo mais do que desafiante, poderia trazer consequências irreversíveis.

Alemanha e França nos contornos da Europa

É verdade que a Alemanha que Merkel deixou politicamente já é diferente daquela que existe hoje, mas o seu legado ainda lá está. As hesitações e a forma moderada como se vai agindo politicamente testemunha esta forma alemã, pós-Segunda Guerra Mundial, de fazer política. No outro lado do eixo fundador da União Europeia está a França, nunca governada por uma mulher, mas com Marine Le Pen a simbolizar esse apelo ao nacionalismo que tenta congregar os deserdados e insatisfeitos da democracia e da construção europeia.

Sabendo que teria de moderar o seu discurso para se aproximar mais do seu eleitorado, Le Pen faz esse exercício. Não conquista o poder, mas sabe que Emmanuel Macron vence porque existe voto útil e sabe que esse eleitorado do voto útil pode mudá-lo num futuro breve.

Percebemos, então, que o sentimento de alienação relativamente ao poder político e à construção comunitária e societal não é algo que apenas assola os países jovens.

Acabou, também, por se tornar um problema de toda a Europa que viu no nacionalismo uma forma de resposta ao seu envelhecimento. Como se ao escolher este caminho que parece tão novo, mas que foi experimentado antes, os países europeus pudessem reverter o processo de multipolaridade exógena e a perda de centralidade em que se encontram, apesar da sua força ter sido mesmo essa sua capacidade de se globalizar.

São estes os anacronismos que nos aconselham a parar e refletir sobre o novo e o velho na Europa.