1. Superficialização que desmaterializa

Superfície significa, geometricamente, uma entidade bidimensional. E é precisamente de entidades bidimensionais que o nosso mundo se povoa cada vez mais. São os ecrãs com muitas polegadas dos televisores e dos computadores cada vez mais finos, são as telas dos smarphones e dos eReaders quase uma folha de papel, e são também outras peças ultra-finas do nosso quotidiano, por exemplo de mobiliário, montadas com materiais sintéticos ultra-resistentes.

Um prodígio de desmaterialização física. Não por acaso, embora seja só mais um exemplo, a gigante tecnológica Microsoft deu ao seu célebre modelo de computador portátil o nome desta nova realidade ambicionada – surface.

Mas como interpretar esta tendência para a superficialização dos objectos do nosso quotidiano?

A bidimensionalização das coisas do mundo em nosso redor, com que lidamos quotidianamente, comprime-lhes a espessura até uma condição residual, apenas o mínimo, o que a necessidade física exige para arrumar componentes cada vez mais miniaturizados, espessura desprovida de significação. Esta tendência pode ser expressão de desmaterialização tão real quanto os modos pelos quais nos desmaterializamos os contactos e os relacionamentos, com toda a tecnologia medializadora, redes sociais, etc., e também valores culturais, ao serviço de uma ausência crescente nos modos de presença.

Cada sucesso tecnológico é uma vitória no progresso em direção à utopia de uma existência etérea, descarnada. Menos comparência, menos peso, menos espessura, menos materialidade em suma, essa é a obsessão que tem feito da nanotecnologia o domínio científico de maravilhamento por excelência da modernidade tardia, levando à progressiva bidimensionalização das coisas que usamos nas nossas vidas quotidianas.

A cultura de superficialização não é só tecnológica. Por exemplo, na moda é uma tendência bem patrocinada pelas celebérrimas irmãs Kardashian – o corpo relevado apenas na sua superfície, silhueta esculpida, corpo cada vez mais confinado dentro da superfície que o molda, como num exosqueleto estético, esquecido em tudo o mais que não seja a sua superfície exterior ou o que lhe dê forma.

Há nesta superficialização da realidade, incluindo a dos nossos corpos, uma espécie de idealismo platónico. As formas ideais do corpo equivalentes às ideias platónicas, inexistentes no mundo das pessoas de carne e osso. Vale para os corpos, vale para as expectativas de sucesso, vale para a vida, cada vez mais guiada por modelos que não existem concretamente em lado nenhum, modelos sem realidade palpável, mas que moldam opressivamente a realidade concreta em que vivemos.

Esta superficialização nada tem de superficial. Prolonga muito consequentemente um quotidiano de coisas fechadas sobre si mesmas, encerradas sob a sua superfície, sem respiração, transpiração, odor que as transborde, inexpressivas, a ponto de ser essa inexpressividade a forma decantada da sua expressão. Coisas que não se deixam tocar pelo mundo. Até nós próprios, enquanto coisa humana, auto-objectivamo-nos desta maneira. É uma espécie de imunização face ao mundo rodearmo-nos de plástico e agirmos como se fôssemos de plástico. É como se cada coisa no mundo estivesse sozinha, uma espécie de solipsismo das coisas revestidas a superfície de plástico.

  1. Superficialização que materializa

Mas esta mesma superficialização que marca o nosso tempo mostra também uma outra intencionalidade, que, pelo contrário, não desmaterializa. Multiplicam-se as superfícies de contacto sensível, que até adentram no interior da espessura das coisas, muito além da bidimensionalidade geométrica. Por exemplo, consolas cada vez maiores em carros cada vez mais envidraçados a tornarem-se, tanto quanto conseguem, todo eles superfície de experiência. Ou de novo na moda, a convergência entre design de moda e um design de superfícies expressivas, em que a expressão do corpo tridimensional conjuga, por exemplo, com a expressão de superfícies estampadas, com densidade de sentido.

Esta ambivalência entre duas tendências no mesmo processo de superficialização pede interpretação, para conferir sentido a escolhas.

As superfícies digitais são um lugar frequente da superficialização que desmaterializa. Mas não tem de ser assim.  Pode haver muita materialidade analógica no digital e também muita digitalidade discreta sob um contínuo analógico. A tecnologia aproxima o digital do analógico. Por exemplo, as superfícies digitais tácteis simulam o toque a ponto de, por falhas na calibragem dos dispositivos, darem vida a toques fantasma e toques aleatórios. Como se fossem a encarnação digital da experiência do membro-fantasma sentido por pessoas amputadas. E com o aperfeiçoamento nanotecnológico, os ecrãs multitoque serão capazes de alcançar e ultrapassar o ponto em que neles o toque humano deixa de se distinguir de o de uma superfície contínua, analógica.

A aproximação da nanotecnologia à biologia encontra um exemplo extraordinário nas borboletas Greta Oto, borboleta com nome de pessoa e asas de vidro, transparentes como o corpo da Ava do filme “Ex Machina”. Além desse prodígio de transparência, são asas que não fazem reflexos, a ponto de a sua organização celular ser estudada e inspirar a evolução da tecnologia de superfícies digitais.

  1. Superfícies para respirar e sentir

Voltando ao princípio. O que é uma superfície concreta? Pode ser a camada exterior de um corpo sólido, ou a parte superior de um líquido, ou ainda o contacto entre duas massas de ar. Há superfícies para todos os estados físicos da matéria, para todos os estados de agregação das partículas que a compõem. De modo mais geral, superfície é a interface entre duas fases.

De forma sugestiva, poderíamos dizer que a superfície é como o intervalo de uma continuidade, uma distensão, lugar da respiração possível da realidade. Respiramos através de superfícies, arborescências brônquicas que são fractais de ampliação da superfície respiratória, centenas de milhões de alvéolos pulmonares, sacos de delgadíssima membrana. Os fractais naturais são superfície ampliada, que se desdobra fundo na terra pelas raízes das plantas ou fundo no corpo de carne pela sua vascularização.

O fractal superficializa até ao ínfimo e em profundidade. E por aí as superfícies ampliadas aproximam-nos de uma condição vegetal que nada tem de vegetativa. Há uma belíssima representação do sistema vascular humano na “Encyclopédie” (1751-1772) que parece uma árvore viçosa a irradiar de dentro do corpo de cada um.

Os nossos sistemas vasculares são como raízes enterradas dentro dos corpos, desdobrando-se até ao ínfimo para constituir superfície sensível em profundidade. A carne sensível das nossas enervações e irrigação é toda ela tornada superfície que, ao mesmo tempo, é espessura, superfície-profunda. Contrapor a imagem de um homem vegetal à de um homem mecânico é uma boa imagem para um sentido de superficialização que é respiração em contraste com outro que não respira.

E também sentimos através de superfícies, cada um dos cinco sentidos uma superfície sensível, a retina e as suas células fotossensíveis, a membrana timpânica, os epitélios na pele interior do nariz, as papilas gustativas, a pele toda, sempre superfícies a fazerem interface entre duas regiões do real, duas fases.

  1. Aflorar, superfície do mundo

Aflorar é uma belíssima maneira de dizer que algo vem à superfície da Terra. Há afloramentos rochosos quando veios e filões das profundezas surgem expostos na superfície térrea. E há ainda o aflorar assuntos como quem os abre para que, eventualmente, a verdade acabe também por aflorar, como um revelar-se e um acontecer condensados na ideia de algo vir a ser flor. Algo metamorfoseia-se para dar origem a uma flor, as suas pétalas em delgada superfície do mundo.

Trazer à superfície, à luz do dia, do fundo da terra escavada ou das profundezas mergulhadas é um acto de conhecimento porque é na superfície das coisas que as podemos tocar com os sentidos e, então, ganhar familiaridade, aflorando-as.

Ficou célebre o pensamento de Paul Valéry de que o mais profundo no homem é a pele. O paradoxo resolve-se de várias maneiras possíveis. Por um lado, a rejeição de que haja uma profundidade que oculta um sentido vedado à superfície. A superfície não tem de ser superficial como se não tivesse significação. Por outro lado, descobre uma profundidade da pele humana, que guarda sentidos. Aliás, a relação entre memória e pele é muito pregnante.

A memória é uma pele de dentro, superfície enervada do esquecimento, que recorda pelo toque da lembrança. E, por sua vez, a pele de fora, pele mesma, é a sua própria memória, quando forma o hábito de uma expressão, quando já não desenruga essas formas que formou, quando guarda marcas passadas. Mas, sobretudo, quando sentimos, como uma repetição, a memória do tacto aflorar a pele. Como a memória sente, também a pele memoriza.

No filme “Crash”, de David Cronenberg, as feridas cicatrizadas são memória na pele tacteada como se fossem membranas de recordação intensa entre duas consciências em estado erotizado. À flor da pele.

E “Memória de pele” (memory of skin) é o título que a artista plástica japonesa Chiaru Shiota deu a dois trabalhos seus, um de 2001 e outro de 2005, longuíssimos vestidos, com vários metros de altura, cobertos de sujidade, sob chuveiros que escorrem água.

Em todas estas superfícies toca-se para receber algo, que se espera como um acontecimento, algo que é mais do que se espera, esperar o inesperado, dentro de uma região de ser, um pedaço de realidade exprimível, intervalo livre, membrana com e para o mundo.

E lidamos com a nossa própria consciência como o que precisa de ser tocado. Sem impressão, a consciência esvanece-se. Mas estarmos aí e ser tocados por outra matéria, encontro de matérias, é uma espera. Tocar é desencadear o tocável que aguardava o toque. A consciência é como uma superfície fluida deste toque. Um lugar de ressonância, em que ondas se propagam até se esvanecerem na inconsciência.

A palavra tanger participa da etimologia das palavras contacto e contingente. O instrumentista toca música – mesmo se não tange cordas, pressiona teclas, ou sopra por um bocal. O resultado é sempre fazer aflorar consciência a partir do toque. O instrumentista arranha o seu instrumento musical conhecendo-lhe a superfície sensível melhor do que a das suas próprias mãos. As cordas arranhadas, as entranhas do piano preparado dedilhadas por John Cage. E o resto da sua superfície pode ser convocada, superfícies ampliadas, por exemplo todas as partes de uma viola, ou o interior do piano esfregado por Nils Frahm com uma escova de sanita. Superficialização sensível de todo a coisa-instrumento para lá da superfície dedicada. Fazer superfície é fazer acontecer.

A noção de superfície não é inequívoca. Pode significar a parte mais externa de uma coisa, o limite para além do qual são outras as coisas, uma descontinuidade, em que a unidade é garantida para o lado de dentro, mas não para o lado de fora. A superfície pode separar uma realidade na sua unidade do resto em volta, ou, pelo contrário, ligar realidades, justapostas, conviventes. E é por aqui que há que fazer caminho.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.