Comecemos pelo primeiro caso. A SIC transmitiu imagens dos interrogatórios de José Sócrates na Operação Marquês, gerando um coro de críticas, sobretudo por parte de muitos advogados e de alguns jornalistas.
De facto, a lei proíbe a transmissão de imagens de interrogatórios judiciais, a menos que exista autorização do juiz e das pessoas envolvidas. Além da questão do segredo de justiça (que neste caso não se aplica, porque o processo já não está nessa fase), existe a necessidade de proteger a privacidade das pessoas visadas.
Compreende-se que a Ordem dos Advogados se pronuncie contra a divulgação das imagens, até porque a Justiça portuguesa não fica bem na fotografia. É o papel da Ordem defender isso. Mas o papel dos jornalistas é informar, mesmo que para isso tenham de correr o risco de desrespeitar a lei. Tal como os tribunais europeus têm reconhecido em casos idênticos, o interesse público pode sobrepor-se ao direito à privacidade previsto na lei.
O código deontológico obriga os jornalistas ao dever de respeitar a privacidade dos cidadãos. Mas abre uma exceção quando está “em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende”. A exceção aplica-se neste caso.
Em primeiro lugar, porque o material contido nas imagens tem interesse público, ajudando a compreender o que está em causa na Operação Marquês. A qual, recorde-se, visa um ex-primeiro-ministro acusado da prática de crimes no exercício de funções, não um qualquer cidadão anónimo acusado de assaltar uma bomba de gasolina. Tudo o que foi dito naqueles interrogatórios tem um interesse público incontestável.
Em segundo lugar, e independentemente das questões criminais, o discurso de José Sócrates nestas gravações contradiz aquilo que defendeu enquanto governante, nomeadamente certos aspetos do seu caráter e sentido de serviço público. Por exemplo, quando admite, candidamente, que a “vaidade” é a única motivação para a sua carreira política. Ou quando refere, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que durante anos viveu de “empréstimos” de um amigo que, como sabemos, trabalhava num grupo que ganhou milhões de euros em contratos públicos celebrados durante o seu Governo. É uma situação muito questionável.
Por outro lado, a verdade jornalística não é a verdade jurídica, nem os seus tempos são os mesmos. Os tribunais decidirão se Sócrates é inocente ou culpado dos crimes que o acusam, mas todos temos direito a formar a nossa opinião sobre o caráter de um ex-primeiro-ministro que vai de férias pagas por um empresário a quem telefonava a pedir “fotocópias”.
Além disso, a obtenção das gravações pela SIC não foi feita de forma ilegal, dado que os jornalistas foram constituídos assistentes do processo, de forma legítima, tendo acesso ao material nessa condição. A tese de que os jornalistas não deveriam poder constituir-se como assistentes tem fundamento, dado que a condição de assistente põe em causa a objetividade do jornalista (o assistente é, por definição, alguém que ajuda o Ministério Público na acusação), mas não deixa de ser uma forma legal de aceder à informação para poder cumprir um objetivo legítimo: informar o público.
Por fim, temos o segundo caso, aquele em que nem tudo o que é legal é ético. Refiro-me aos subsídios recebidos a duplicar pelos deputados dos Açores e da Madeira. É legal? Sim. Mas não existe nenhum interesse público que o torne eticamente aceitável. Existe apenas o interesse próprio dos deputados que recebem duas vezes o mesmo subsídio.