“Severance”, uma brilhante série de ficção científica recentemente lançada pela Apple e realizada por Ben Stiller, é, talvez, a mais genial reflexão da atualidade sobre o que se tornou o mundo do trabalho sob a égide do capitalismo.
A premissa é aparentemente simples. Seguimos a rotina de uma personagem, Mark, que todos os dias se dirige para o seu local de trabalho, a empresa Lumon, onde opera a mesma rotina com os restantes colegas de trabalho. Mas há uma diferença importante. Mark submeteu-se ao procedimento de “severance”, em que a sua personalidade de trabalho é dissociada da personalidade que vive no exterior do escritório e tem uma vida pessoal.
Mark não foi forçado a isso, voluntariou-se para essa iniciativa após a morte da sua mulher e como forma de anestesiar a dor.
O facto de poder passar oito horas por dia no local de trabalho desligado de emoções, de toda a sua tristeza e angústia, tornam a vida um pouco mais suportável. A personalidade no interior, que só conhece o mundo da empresa, não tem memória da vida que leva no exterior. Até ao dia em que chega uma nova colega de trabalho que é incapaz de aceitar a sua integração neste sistema e tenta tudo para escapar, até uma tentativa de suicídio.
Naquele escritório – impessoal, clínico e sem janelas – os trabalhadores encontram conforto num trabalho sem grande sentido, permanecendo emocionalmente estáveis, focados e empenhados no sucesso. O trabalhador de sonho para qualquer empresa. Quem não gostaria de ter trabalhadores que deixam as atribulações da sua vida privada à porta? E enquanto estão no exterior, os problemas do trabalho são incapazes de os perturbar porque simplesmente não têm qualquer recordação do seu dia a dia na empresa.
A ficção científica presente na série não é assim tão inverosímil. Durante a pandemia, a rotina do trabalho deixou de estar dissociada do nosso espaço pessoal. Este tornou-se uma extensão do escritório, onde estamos sob permanente vigilância online dos colegas e chefias. Se para alguns a adaptação trouxe vantagens de mobilidade, para outros tornou-se insuportável essa fusão de espaço pessoal e profissional. E porque aceitámos isto?
Aceitámos porque o trabalho tornou-se a âncora de aparente normalidade num mundo cada vez mais desequilibrado e pleno de assimetrias. É, no fundo, a razão por que nos adaptámos a todas as exigências que surgiram ao longo da pandemia e continuamos a adaptar-nos a um estranho mundo em que normalizámos sucessivas vagas pandémicas.
Sem a referência do nosso trabalho para nos orientar, como sobrevivemos num mundo completamente centrado na máquina do capitalismo? Uma máquina cada vez mais disfuncional e que, gradualmente, nos transforma em seres disfuncionais que deixaram de poder controlar o seu tempo e espaço, com fronteiras cada vez mais esbatidas.
Até o deflagrar de uma nova guerra não fez abrandar essa disfuncionalidade, pelo contrário, só tornou o fardo do mundo do trabalho cada vez mais opressivo, devido ao aumento do custo de vida.
O trabalho até pode ser aquilo que mantém Mark de “Severance” ancorado e estável, mas o que nos mantém ancorados nesta realidade cada vez mais distorcida é, também, o que lentamente nos afoga e nos impede de ver e pensar com clareza, com grande custo pessoal.