O 25 de Abril celebra 44 anos e a liturgia oficial continua a desenrolar-se sob a dependência das mesmas palavras generosas, Liberdade e Democracia, e da mesma iconografia, o cravo saído do cano da arma, ao som das músicas da época, 1974. É assim que em Portugal, seja para celebrar Camões ou a República, a rotina se instala, tudo se banaliza, e as datas ficam reféns do passado. O institucional tem sempre primazia sobre o popular. A gravidade inevitavelmente triunfa sobre a alegria. Uma versão elaborada do “cada qual no seu lugar”.
Desta forma, o País real, com mais que fazer do que olhar para o televisor onde passam as “cerimónias oficiais”, sabedor da inevitabilidade dos ocos discursos de circunstância, habituou-se a ir à sua vida e, se o tempo o permitisse, à praia.
Sendo um dos portugueses que tiveram a oportunidade de viver esse dia fantástico, inesquecível (e já apenas constituímos 50% da população), também eu me confesso desiludido com a falta de capacidade política para entender os novos desafios da sociedade e para os projetar num discurso regenerador.
Entendamo-nos: o 25 de Abril foi o ponto de partida para uma sociedade incomparavelmente melhor. Na saúde, na escola, na segurança social, nos transportes, nas redes de comunicação e em muitos mais domínios o País percorreu um caminho extraordinário, socialmente revolucionário. Só um ignorante, independentemente das crenças políticas, o não reconhecerá.
Mas, chegados aqui, há constatações novas a fazer, outras batalhas a travar, e quanto mais depressa melhor.
A Liberdade está ameaçada por novos perigos.
A Democracia portuguesa foi aprisionada pelos gestores do sistema.
A III República está doente, minada pela corrupção.
O miserável caso Sócrates, envolvendo as antigas grandes empresas do regime (como a PT) e outros protagonistas, a que se junta agora o ex-ministro da Economia Manuel Pinho, é apenas a prova máxima. Uma entre muitas.
É por isso que aplaudo intervenções como a de Ana Gomes, notável mulher socialista que gostaria de ver o próximo Congresso do PS a refletir sobre o passado recente (empreendimento em que não acredito que ela venha a ter êxito).
Enquanto todos os partidos cúmplices (PS, PSD e CDS) fecham os olhos ao que de mau também produziram no passado, é justo, no entanto, ressalvar o papel do Presidente da República.
Marcelo Rebelo de Sousa foi o único responsável político (acompanhado pela jovem Margarida Balseiro Lopes, do PSD) a quem, 44 anos depois, ouvi falar na necessidade do combate à corrupção e da reforma do sistema. E felizmente que o fez na mesma casa, a Assembleia da República, em que o presidente, Ferro Rodrigues, acha de irrepreensível ética que o deputado e presidente do seu partido, Carlos César, entre outros espertalhões, aproveite uma falha da lei para cobrar viagens a dobrar.
A República deve fixar-se neste discurso, e nestes casos, para entender melhor o ataque desencadeado por alguns poderes ocultos contra a investigação, o MP, e a PGR, Joana Marques Vidal.
No futuro, celebrar o 25 de Abril terá de ser festejar a emancipação da Justiça perante os criminosos de colarinho branco. Sem isto, Liberdade e Democracia são apenas palavras bonitas.